CAPÍTULO I – UMA CANOA NA VOLTA DE CIMA
As gotas de orvalho ainda faziam cócegas nas folhas das samambaias quando o cortejo começou a descer o Mogi Guaçu. A canoeira formava procissão na direção da vila, rezadeiras dedilhando o rosário de contas e entoando um terço sem fim. Nas barrancas o silêncio era de pranto, que ia entristecendo mais e mais a cada piado do socó-boi, ave que não sabe cantar outra coisa que não a tristimania.
Sentado na praia, riscando a areia com os dedinhos magros das mãos, o menino só conseguia aumentar ainda mais a solidão, razão da gastura que sentia no estômago. Junto com ela um aperto que parecia querer arrancar fora seu coração, ainda tão pequeno para abrigar toda aquela tristura.
Seu mundo, que até então se restringia à distância entre o rancho e a vila, agora parecia não ter mais fim, estendendo-se pela vastidão dos campos que se emendavam com a várzea ribeirinha. Por mais que tentasse, não entendia: por que sua mãe descia o rio deitada no fundo daquela canoa, toda enfeitada com ramagens nativas? Sabia apenas que ela lhe dissera, na tarde anterior, olhos esgazeados, num fiapo de voz, que o filho teria de subir o rio sempre pelo lado do rancho. Seu pai o estaria esperando num lugar muito bonito, chamado “Volta-viva”, onde as flores do ipê forram de amarelo o colo da terra.
Não houvesse se refugiado nas moitas de capituva, aquela gente também o teria levado rio abaixo, que todos o caçaram noite adentro. Até a hora em que o cortejo começou não deixou o seu esconderijo. Permaneceu o tempo todo à espreita, sentindo nas narinas, trazido pela brisa, o odor acentuado da fumaça das velas queimando nos cantos da mesa tosca de tábuas sobre a qual o corpo da mãe fora velado.
Quando as ladainhas, ave-marias e pais-nossos já não mais faziam eco pelas grotas dos barrancões, foi-se chegando para a beira. Contudo, levado pela cisma, novamente tratou de acoitar-se no meio da vegetação, permanecendo inarredável no seu esconderijo até que a última canoa desaparecesse na curva, por trás do capão de ingazeiras.
O silêncio o fez ganhar coragem e saiu ao leu. Sem dar conta do que de fato ocorria ao seu redor, pois estava dominado por um só pensamento, o de encontrar o pai, começou a caminhar pela praia rio acima até que caiu prostrado. Exausto, abrigou-se sob a sombra de uma figueira centenária, frondosa, que cobria com seu manto de ramos e folhas a cama que ele escolheu para deixar o sono tomar conta do seu corpo. Foi fechando os olhos lentamente, sentindo a gostosura de poder dormir.
Pouco antes de cerrar as pálpebras, a imagem tênue de uma canoa surgindo na volta de cima foi crescendo em sua mente. Entretanto, o sono era maior que a vontade de ficar acordado. A brisa brincalhona que cavalgava o dorso das águas ora preguiçosas ora ligeiras do Mogi Guaçu, sussurrou-lhe qualquer coisa, um aviso, um alerta, à medida que a embarcação embicava na reta. Porém, aí, segundos depois, ele já dormia profundamente…
CAPÍTULO II – NA BOCA DA ONÇA
O ambiente era cercado de paredes de tijolos à vista, daqueles de formato antigo, chamados de tijolão, medindo 36 cm de comprimento, 18 cm de largura e 9 cm de altura, e telhado sem forro coberto por telhas coloniais. Ambos eram fabricados nas olarias montadas pelos migrantes italianos, de forte tradição cerâmica, que se instalaram no vale do médio Mogi Guaçu.
Sobre o piso de cimento, misturado com um pó chamado de “vermelhão”, estavam dispostas apenas quatro mesas, sem toalha, madeira encardida pelo passar do tempo e nenhuma limpeza mais frequente. Nas prateleiras, atrás do balcão de madeira, igualmente encardidas, havia duas fileiras de garrafas, uma em cima e outra em baixo. Na superior, aguardente “Providencia”, fabricada no alambique da Usina Engenho Velho, nas proximidades de Araraquara, que ganhara a preferência de todos os cachaceiros da vila; na inferior, várias garrafas de “Cotuba”, um guaraná caipira, e de “Tubaína”, apelidada de “Coca-Cola dos pobres” por ser bebida genérica do famoso refrigerante inventado nos Estados Unidos.
Depois de esgotados todos os comentários e opiniões sobre a morte do presidente Getúlio Vargas, que se suicidara com um tiro no coração na madrugada de 24 de agosto, naqueles dias dos meses finais do ano de 1954 quase sempre já não havia muito sobre o que os pescadores conversarem. Todavia, naquela quarta-feira, 25 de setembro, o bar “Boca da Onça” ficou cheio desde as primeiras horas da manhã. O assunto que tomou conta do boteco e caiu na boca da população fora um acidente com o trem noturno da Mogiana. A ferrovia de bitola estreita, depois de ter instalado, bem antes, o ramal de Jathay – ligando Ribeirão Preto a São Simão –, à época estendeu a linha ao criar a bifurcação, partindo de Monteiros, que deu origem ao ramal de Guatapará.
Segundo os que estiveram no local ainda no meio da noite anterior e que, portanto, estavam mais bem informados, a coisa se deu assim: como fazia sempre, todas as noites, o trem saiu da estação pouco antes das 8. Só que, como a chave estava virada para o lado errado, sem que o maquinista percebesse por causa da escuridão, a locomotiva, puxando um vagão de cargas e outro de passageiros, ganhou velocidade, entrou num desvio, chocou-se contra o parapeito no fim da linha, desceu estrada abaixo e quase caiu dentro do Mogi Guaçu.
Durante anos não se conseguiria provar quem fizera – e por que fizera – aquela traquinagem, que na verdade se configurara, segundo a polícia, um ato de vandalismo criminoso. Até que um dia o chefe da estação, seu Alcides Camargo, que desconfiava da identidade e do motivo do autor, conseguiu que ele, num almoço em sua casa, acabasse admitindo a culpa: nada mais nada menos que Joaquim “Quinzinho” Oliveira, um afilhado de Marcílio de Souza, apelidado de “Mestre Cilão”, que há décadas vinha sendo professor da maioria dos pescadores de Guatapará.
CAPÍTULO III – O CHEFE DA “QUADRILHA” MIRIM
Paralítico de uma das pernas, “Quinzinho” fora acometido de poliomielite aos 2 anos e meio, época em que a família ainda morava na colônia da Mombuca. Conforme orientação médica, e de acordo com um calendário estabelecido pelos ortopedistas, de quando em quando dona Alice levava o filho a São Paulo e o internava na Santa Casa de Misericórdia, na Rua Cesário Mota, Largo do Arouche. Em cada uma dessas internações ele passava lá vários meses, sendo preparado para mais uma cirurgia visando a correção das sequelas deixadas pela doença. Após três meses de engessamento e mais um de fisioterapia ele voltava para junto dos familiares, em Guatapará.
Esse vai e vem durou até 1954 e na última vez em que voltou para casa já andava usando um aparelho ortopédico. Todavia, só conseguia fazê-lo mais seguramente apoiado numa vara de eucalipto. Graças a um vizinho carpinteiro e marceneiro, Benedito Ferreira da Silva, o “Dito Caboclo”, que a transformara numa bengala, mais exatamente numa espécie de cajado, que, após aplainar, lixar e envernizar, lhe deu de presente. Eram vizinhos: a família de “Quinzinho” morava na casa em frente à estrada que começava na sede e terminava nos fundos da propriedade, e a de “Caboclo” ficava no fundo do quintal, área compartilhada pelas duas famílias, entre o poço que servia a todos e o início das terras reservadas a atividades agrícolas diversas.
Da frente da casa do menino, poucos metros além, partia uma bifurcação com dois destinos: um deles, à direita, levava, à olaria e, mais ao fundo, ao porto de extração de areia, duas das três atividades da fazendinha – a terceira era a agrícola – que à época tinha à frente os primos Ueta, Miyamura e Ikuhara, chamada de “Xirota” e também de “empresa dos japoneses”; à esquerda, uma viela estreita tinha logo à frente o paiol, depois os chiqueiros e mais além, já na várzea, a horta tocada por um parente deles, de nome Florindo.
Como já podia se locomover por distâncias maiores, dona Alice matriculou “Quinzinho” no grupo escolar da vila, recém-inaugurado. Assim, a partir de então toda manhã lá estava ele frequentando a classe que misturava alunos do 3º e 4º anos do curso primário. Depois, junto com amigos e colegas que moravam no “Xirota”, ao voltarem, lição de casa feita antes do almoço, arteiros como eram entregavam-se a todo tipo de traquinagem.
Nem sempre conseguiam ficar aquém dos limites e acabavam pagando por isso, pois as mães, como era comum numa época que ainda não imperava o politicamente correto, usavam a cinta como o método mais usual de lhes aplicar corretivos. Todavia, quase sempre era “Quinzinho” quem levava a pior. Agindo como uma espécie de chefe da “quadrilha” mirim, arquitetava as estripulias, distribuía as ”tarefas” aos seus “subalternos”. Mas quando a bomba estourava eles corriam e escapavam das mães, o deixando só. Como mal podia andar, dona Alice o alcançava fácil e… tome peia!!!
“O Filhote”, romance de Plínio Vicente da Silva, está sendo publicado em capitulos.
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