CAPÍTULO XIX – NASCE UMA DUPLA CAIPIRA
Os meses passaram e “Jura” se revelou um dos pescadores mais produtivos da turma de Jorge Sakamoto. Ganhou um bom dinheiro e assim que terminou a temporada de pesca já estava morando com a mulher na casinha que mandou construir na beira da estrada após a curva que ela fazia para os lados da vila. Era simples, mas tinha tudo o que “Dorvinha” queria: um bem cuidado jardim na frente, uma horta com tudo o que precisava, um pomar com fruteiras variadas e animais domésticos no quintal, como uma cabra com cria que dividia com ela o leite das tetas; galinhas e muitos ovos que ela recolhia dos ninhos no meio da manhã; patos, perus, galinhas d’angola e uma porca e seus leitões. Para ela era, enfim, o lar que sempre imaginou ter em sua vida de casada: bem cuidado e com fartura dentro de casa.
Nos finais de semana o jovem casal gostava de se divertir no salão de baile do Esporte Clube Guatapará, nas proximidades da estação de trem, não muito longe do boteco “Boca da Onça”, frequentado por pescadores, roceiros e outros trabalhadores do lugar. Nesse tempo em que passavam por lá, “Jura” formava dupla com Jeremias Frediani, o “Jerê”, neto de italianos, violonista, com sua primeira voz aguda muito bonita e bem afinada, contrastando equilibradamente com a segunda voz, de tom grave, do companheiro, um hábil tocador de viola. Ambos eram considerados tão bons violeiros que até já se falava que poderiam ir cantar música caipira nas rádios de Ribeirão Preto e Araraquara.
Por seu lado, “Dorvinha”, considerada uma esposa exemplar, era também uma exímia dançarina. Muito ativa, extrovertida, com uma enorme energia, era capaz de distribuir entre todos sua alegria contagiante, a ponto de as demais mulheres terem nela um exemplo de vida, tamanha a sua simpatia. Havia um porém: “Jura” não sabia e não gostava de dançar. Por isso, nos intervalos entre umas modas e outras, enquanto o sanfoneiro dedilhava o teclado num rasqueado, o marido ia beber com os amigos e não se importava com o fato de a mulher se esbaldar com seu parceiro “Jerê”, dançarino de primeira, que, nos bailes, passou a ser companhia fiel de “Dorvinha”. Nem mesmo quando os fuxiqueiros começaram a falar dos dois “Jura” levou as insinuações a sério. Gostava de ver a mulher alegre, confiava nela e no amigo, que considerava sua “voz gêmea”, e até cogitava mesmo ir com ele cantar nas rádios.
Com o passar do tempo, certa noite, num sábado de agosto, o radialista Gavino Virdes, candidato a vereador em Ribeirão, apareceu em Guatapará para fazer campanha e pedir votos. Ele era muito popular entre os guataparaenses, pois sempre defendeu a pretensão dos moradores em verem a vila, que estava por nascer, ser transformada em distrito. Uma das suas atividades foi discursar no salão de baile do GEC. Depois, como ainda era cedo, antes de voltar a Ribeirão resolveu ficar no baile e se encantou com “Jura” e “Jerê”. Locutor e apresentador da PRA-7, elogiou os violeiros e lhes prometeu que levaria a dupla para cantar em um programa de música caipira da emissora.
O convite fez a dupla levar a cantoria a sério. O que antes era apenas um passatempo virou atividade artística com capacidade para-lhes garantir um futuro naquela profissão. Assim, todo final de semana os dois se reuniam na casa de “Jura” e “Dorvinha” para ensaiar e até compor músicas novas, pois as que cantavam eram aquelas que conheciam de ouvir no rádio. Com isso, as relações de “Jerê” com o casal foram ficando cada vez mais intensas. Até que “Jura” começou a desconfiar; Um dos sintomas apontando para o fato de que nem todos os fuxicos eram exagerados, veio certo dia quando, ao se despedir, “Jerê” apertou a mão do amigo e deu um abraço apertado e um beijo colado no rosto de “Dorvinha” quase perto de sua boca. Pior: ela não recusou e até mostrou, alegremente, que gostara daquele afago.
A cena expondo tamanha intimidade fez o sangue do marido ferver e embora guardasse para si o ciúme, passou a desconfiar de que a mulher e o amigo, diante daquele motivo aparente, pudessem o estar traindo. Embora contaminado pelo vírus da desconfiança, mesmo assim fez de tudo para evitar brigas ou mesmo alguma discussão. Amava demais a mulher e não queria de forma alguma que ela se magoasse com as suspeitas dele. Por isso, tratou de se controlar, embora mantivesse uma atenta vigilância sobre os dois. Afinal, descobriu, a vida entre os três já tinha uma história.
CAPÍTULO XX – O FILHOTE DE PERIQUITO
Naquele fim de tarde em que derrubou o pé de ipê e destruiu o ninho encravado no cupinzeiro, assim que chegou em casa “Jura” entregou o filhote nas mãos da mulher. Recomendou que cuidasse bem dele, pois já tinha comprador garantido para o pequeno periquito tão logo estivesse penado e se alimentando sozinho. Por isso, talvez até por ter na pequena ave a imagem de um filho que, esperava, não demoraria a chegar, “Dorvinha” alimentou com carinho e amor aquele pequeno ser. Fez para ele um ninho com aquelas penas plumadas sobre as quais as patas chocam seus ovos, o alimentava de duas em duas horas com papinha de fubá e o fazia beber água usando um pequeno conta-gotas que guardara de um vidro de remédio.
Com o tempo, o filhote cresceu, a penugem foi substituída por belas penas verdes, com uma mancha amarela na testa e rajadas azuis nas asas. Não demorou muito para que começasse a aprender a falar. E de tanto ouvir, sempre empertigado em seu poleiro, preso por um dos pés, algemado numa anilha de metal ligada a uma correntinha que o impedia de voar, até cantava pequenos trechos de músicas imitando os dois violeiros. “Jura” e “Jerê”, então, eram as palavras que ele mais repetia. Aprendera até a diferenciá-las, divertindo a todos quando as pronuncias saiam com o tom da voz grave do dono da casa e depois com o agudo do seu parceiro.
O tempo passou, os violeiros seguiam dando show nos bailes de sábado, mas o convite do radialista não chegou. Cantar na PRA-7, no entanto, seguiu sendo um sonho adormecido na alma de “Jura” e “Jerê”. Por seu lado, “Dorvinha” não deixou diminuir seu entusiasmo e manteve total apoio ao marido e ao amigo. A vida dos três seguiu na mesma: “Jura” trabalhando como pescador e machadeiro, tendo como professor “Mestre Cilão”, que lhe ensinava os segredos das duas profissões; já o parceiro de cantoria tinha outra atividade, trabalhava na olaria. Como a mãe, sua parceira, ficara doente, convenceu “Jura” a permitir que “Dorvinha” o ajudasse na produção de 2.500 tijolos que fazia de segunda a sexta-feira, das 6 da manhã ao meio-dia.
Como “Jura” saia cedo, não haveria problema para que, depois de preparar o almoço que ele levava para o trabalho num caldeirão de alumínio, a mulher também pegasse na olaria no raiar do sol. Depois, ao voltar para casa, ela sempre teria tempo suficiente para cuidar das responsabilidades domésticas e dar atenção ao jardim, à horta, ao pomar e aos animais domésticos. Mas era também sua responsabilidade cuidar de algumas tarefas na olaria, como peneirar e juntar a terra vermelha usada para arear as formas, lavar, secar e guardar as tabuletas com que eram depositados os tijolos no terreirão e assim por diante. No entanto, quando ele chegava no fim de tarde, estava tudo pronto, inclusive a janta. “Dorvinha”, de banho tomado, penteada, bem vestida e perfumada se jogava nos braços do marido e o cobria de beijos como se fosse sempre a primeira vez.
Ele amava a mulher e sabia que era correspondido. Mas o povo fala, e como fala! Os boatos foram aumentando e o veneno destilado pela falação acabou fazendo crescer a desconfiança de “Jura”: estariam eles vivendo uma relação a três? Por mais que tentasse não conseguia eliminar essa ideia da cabeça. Entretanto, mesmo mantendo uma discreta vigília sobre os dois, jamais os apanhou em algum flagrante de maior intimidade. Continuavam formando dupla nas noites de sábado, treinavam nas manhãs de domingo e até via nos afagos entre a mulher e o amigo algo inocente, sem nenhuma tensão sexual. Todavia, sempre que ia à “Boca da Onça” nos fins de tarde, percebia olhares e sorrisos maliciosos nos rostos dos outros homens. Por isso, não aguentando mais a angústia, resolveu que era chegada a hora de saber a verdade.
CAPÍTULO XXI – EM DEFESA DA HONRA
Quase sempre “Jura” chegava em casa no fim de tarde, quando o sol já estava quase se pondo. Como ocorria todos os dias, “Dorvinha” o recebia com tamanho carinho e amor e uma afeição tão alegre, de tamanha felicidade, que, para ele, se fosse fingimento ela era mesmo uma refinada e competente atriz. Por isso, numa sexta-feira, bem depois do fim da temporada de pesca, ali pelos meados de maio, quando as primeiras brisas anunciando a aproximação do inverno já sopravam sobre o vale do médio Mogi-Guaçu, acompanhou a mulher até à olaria, cumprimentou “Jerê” e desceu para a beira do rio a fim de encontrar-se com “Mestre Cilão” no porto de areia. Não havia andado mais que duzentos metros quando, ao olhar para trás, viu “Dorvinha” e o seu parceiro de banca seguirem de mãos dadas para dentro do forno. Voltou às pressas, escondido entre as moitas de fedegoso, e ouviu a mulher dizer:
— Passe lá em casa hoje à tarde. Tenho que lhe contar uma novidade. Você vai gostar, mas é preciso guardar segredo de meu marido.
Aquelas palavras destruíram qualquer resto de confiança que ele tinha nos dois. Precisava fazer alguma coisa para defender sua honra e decidiu que seria naquele dia que acabaria com aquela pouca-vergonha…
Quando chegou no porto “Mestre Cilão” já estava sentado na popa da “Corredeira”. “Jura” subiu na canoa, depositou machado e embornal à sua frente e em silêncio remou com raiva durante o tempo todo. Assim foi até chegarem à área onde “Cilão” pretendia derrubar um jequitibá cujo tamanho tomaria quase o dia todo até ser deixado no jeito, pronto para ser levado rio abaixo até a serraria de “Dito Caboclo”. Era um espécime enorme e seu tronco daria muitas tábuas que o famoso marceneiro empregaria na construção de um novo batelão usado na extração de areia pela empresa do “Xirota”.
Árvore no chão lá pela metade da manhã, restava agora aos dois irem cortando de galho em galho. Tronco à parte, destinado à serraria, os galhos mais grossos da árvore virariam moirões e os mais finos lenha para abastecer os fornos de queima de tijolos. Lá pelo meio dia os dois pararam para almoçar e “Mestre Cilão” se deu conta de que seu companheiro nada dizia e comera pouco. Sabia que o rapaz era um verdadeiro glutão e então percebeu que ele mantinha o semblante carregado de preocupação. Por causa disso decidiu lhe perguntar:
— “Jura”, está tudo bem? Você anda estranho hoje.
— Não estou legal, “Mestre”, tenho uma gastura danada no estômago e pela primeira vez perdi a fome.
— Muito bem. Vamos fazer o seguinte: daqui a pouco alguém vai descer e então você vai junto. Eu dou conta do resto do trabalho.
— Se o “Mestre” não se importar eu vou mesmo para casa para ver se dou uma melhorada.
Enquanto os dois conversavam apontou no começo da volta uma canoa vermelha, a “Asahi”, pilotada por José de Arimateia, o “Mão-de-gancho”, um dos companheiros de caçada de “Cilão”, que cortava madeira mais acima. A embarcação pertencia a Sakamoto, mas ele a emprestara a seu pescador, que estava sem uma desde que “Tabarana”, já com dez anos de uso, estava em reformas no “estaleiro” que “Dito Caboclo” mantinha sob as sombras de algumas ingazeiras a pouco metros do porto de areia.
“Mão” encostou tão logo viu os dois amigos.
Ei, pessoar!!! Acho mió oceis pará o serviço e ir embora. Tá armando um temporá lá pelas bandas da “Vorta Viva” e num demora a chegá pressas bandas…
Foi então que “Mestre Cilão” decidiu:
Está certo. “Jura”, junta as tralhas a vamos para casa. Amanhã a gente volta e termina o serviço.
Assim, lado a lado, “Corredeira” e “Asahi” desceram o Mogi-Guaçu e no meio da tarde “Mestre Cilão” e “Mão-de-gancho” atracaram no porto. Desceram, subiram a escada do barrancão que dava aos ranchos e cada um foi para seu lado. “Mestre” ficou por ali, bebeu um gole de “Providência” enquanto requentava o caldeirão do almoço que levara para o trabalho. “Mão” pegou a estrada que começava na beira do rio e ia dar no depósito de areia, atravessou pela vereda beirando os trilhos da Paulista e foi para casa, na vila. Por seu lado, “Jura” pegou outro rumo: a estradinha que o levaria até sua casa, onde, imaginou, estava sua amada “Dorvinha”. Ia fazer uma surpresa para ela, que não o esperava tão cedo, bem antes do fim da tarde.
“O Filhote”, romance de Plínio Vicente da Silva, está sendo publicado em capitulos.
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