O Filhote. Capítulos X a XII

CAPÍTULO X – O GALO VOADOR

Certa vez Marcílio resolveu pegar um ovo e botar no meio dos que uma pata começara a chocar. Nem bem nasceu e foi rejeitado. Motivo havia: se recusava a atender aos quac-quac da mãe adotiva e a acompanhar os patinhos quando eles pulavam na água do riacho que corria atrás da casa. Colocado de lado, passou a ser criado por Marcílio e Idalina e, com o tempo, como que se transformou num membro da família.

Como manda a natureza, o pinto virou frango e dona Emília decidiu oferecê-lo como prenda em mais um pagamento da promessa ao santo a cuja graça entregou sua fé e muito mais. Com o passar dos meses o frango virou galo, criado na mão, cheio de manias. Só bebia água de cuia e dormia ao som das histórias de Jerônimo, o herói do sertão, ouvindo os gritos de socorro de Aninha e Moleque Saci, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que a família religiosamente ouvia no começo da noite por um velho rádio alimentado a pilhas. Comia milho cateto de grãos vermelho, não adiantava oferecer-lhe outro, e dormia acocorado num galho da figueira grande de copa estirada no fundo do quintal.

No galinheiro só entrava para infernizar a vida das moças e senhoras que formavam o seu harém. Já de esporas criadas, o galo de São João, como era chamado, estava no ponto e só esperava a partida do santeiro para despedir-se daquelas plagas e daí a alguns dias da própria vida.

Pois na manhã do 24, tição ainda fumegando no resto de fogueira, dona Emíliaa avisou ao visitante que ele devia ocupar-se do galo. Prenda dada, prenda recolhida. Mas quem dera que o homem conseguiu apanha-lo, para gáudio de Marcílio e Idalina, que comemoravam a cada escapada, cada drible que o galo dava no santeiro entontecido. Caça daqui caça de acolá, mesmo procurando a noite toda não conseguiu encontrá-lo. Da parte dos dois irmãos nem uma unha de ajuda, destratando as ordens severas da mãe que insistia, depois não com tanto vigor, a que dessem ajuda ao caçador. E o fujão, que sabiam estar empoleirado num galho da figueira, não se deixou juntar a outros seres de igual destino, mantidos no cercado do fundo da casa até o dia da recolha.

O santeiro foi embora sem o galo e ainda na semana, lá pelo 27, chegou à fazendinha um caminhão para buscar as oferendas. Marcílio não soube bem o que deu no galo, mas foi então que teve a certeza de que ele não era só uma ave. Era mais que isso, era quase gente, capaz de correr atrás de bola de capotão ou expulsar do quintal qualquer vira-lata que não fosse das relações familiares. Ou então atender a um simples assovio que o menino repicava três vezes quando o queria ter por perto.

Parece que o galo de São João entendeu o que estava acontecendo. Com a chegada do caminhão veio também uma equipe de prendeiros. Pois no que o pessoal saiu à sua procura, apesar do protesto generalizado dos dois irmãos, que o tinham como mascote, com Idalina debulhando-se num pranto convulsivo pela partida do amigo, no que botaram a cachorrada para cima dele o dito bateu asas e voou. Leve como uma rolinha, decidido como um gavião, veloz tal qual uma andorinha, lá se foi até desaparecer na borda do horizonte.

“Mestre Cilão” nunca soube, no rol das histórias galináceas do sertão cheio de estórias e causos contados, que tenha havido um episódio igual falando de um galo voador. Por isso sempre dizia:

— Ponham fé na minha palavra: meu galo voou, isso mesmo, voou que sou testemunha ainda viva. Com o tempo o inusitado fato virou lenda na boca do povo e registro no folclore das festas juninas de Guatapará e em toda a região adjacente do vale do médio rio Mogi-Guaçu. São João também é testemunha e haverá de não me deixar mentir.

A verdade é que nunca mais se soube do paradeiro do galo ofertado ao santo padroeiro de dona Emília. E nunca mais o Santeiro passou por lá. Nem para a pousada e nem para as prendas. Para desgosto dela, que fizera promessa pela graça alcançada.

 

CAPÍTULO XI – A “ESTREITINNHA”, A ONÇA E OS FILHOTES

Uma voz fininha, de criança, tirou “Mestre Cilão” de seus devaneios:

— “Estreitinha” matô um bicho, “Mão-de-gancho”! – insistiu “Dinho”, o menino que entrara ligeiro feito um quero-quero

Os homens pararam de biritar, largando os copos em cima das mesas de madeira encardidas pelo tempo e a falta de asseio. Que diabo de bicho haveria de ter sido apanhado pela “Estreitinha”? Nem cágado, com toda aquela lerdeza no andar, seria tão preguiçoso a ponto de se deixar atropelar pelo trem mais vagaroso daquela linha de ferro.

“Estreitinha” era o nome do cargueiro que trafegava entre Rincão e Guatapará, baldeando mercadorias procedentes de Jaboticabal, vindas da região central de São Paulo, com destino a Ribeirão Preto e adjacências e vice-versa. O trecho, de aproximadamente doze quilômetros, estendia trilhos de bitolas mistas: uma, de 1,60m, para os comboios da Paulista larga, São Paulo-Barretos; outra, de 1m, para os da Paulista estreita, usada pelos ramais que se uniam ao tronco principal.

Por essa linha férrea intermediária trafegavam vagões e gôndolas puxados por lendárias marias-fumaça, sobreviventes aos tempos pioneiros da implantação das estradas de ferro. Com a chegada de locomotivas maiores, os leitos de rodagem foram modernizados, daí esses trens menores receberem o nome de “Estreitinha”.

Andavam a não mais que a 20 quilômetros por hora. Também não havia pressa e chegar no horário era compromisso que ninguém cumpria. Dependendo de se completar a lotação, ela, a “Estreitinha”, aparecia um dia pela manhã, outro à tarde, a qualquer hora da noite, quase sempre de madrugada, manobrando ruidosa por toda parte, azucrinando a vida dos moradores da beira-linha que não tinham sossego para dormir.

— “Estreitinha” matô um bicho! Foi “Dodô” qui falô! Tão ino prá ponte nova! Diz qui é onça pintada!

Cada sentença que saltava da boca do menino transformava-se numa eloquente exclamação. José de Arimateia, o mineiro “Mão-de-gancho”, levantou a cabeça e puxou o menino para mais perto de si. Acariciou sua cabecinha com os dois dedos que lhe restaram da mão direita – o polegar e o mindinho -, que ficaram sem a companhia dos outros três – indicador. médio e anelar -, perdidos na boca de um jacaré-açu. Abriu um meio sorriso, acentuado por um túnel que se formava pela ausência de dentes frontais nas partes de cima e de baixo da gengiva:

— “Dinho” bota fé nu qui diz?

— Óia lá – apontando para fora da venda, na direção dos trilhos -, tão ino prá vê.

Eram alguns dos empregados da ferrovia descendo para os lados do rio. Num instante os pescadores emborcaram num último trago o resto de cachaça e saíram ligeiros. Como que formando uma fila irregular foram ganhando a estrada esburacada e poeirenta no rumo dos que lá iam, alcançando de pronto o outro grupo para formarem um só bloco.

“Mão-de-gancho” caminhava a passos largos, acompanhado do garoto. Em determinados momentos, que chegavam a se compassar, “Dinho” necessitava correr a fim de poder andar lado a lado com os demais. Alcançava a pressa dos outros e a cada passada afundava os pezinhos descalços na terra fofa da trilha. Alguns andavam sobre a camada de cascalho, produzindo um chic-chic gostoso de se ouvir, mais parecendo o som do chacoalho das cabaças nas danças de São Gonçalo. Chic-chic, chic-chic, chic-chic e a prosa ia rasgada:

— Num credito qui seja onça pintada.

Chic-chic.

— Só veno.

Chic-chic.

­— Magine? Onça pressas bandas?

Chic-chic.

— Vai vê é jaguatirica.

Chic-chic.

— Pode inté sê gato du mato.

Chic-chic.

— “Bentinho” diz que tem gato alongado na vorta de baxo.

Chic-chic, chic-chic, chic-chic, as pedrinhas pulando os dormentes.

 

CAPÍTULO XII – LÁ ESTAVA A “FERA”

Na boca da ponte nova a turma, uma dúzia de pessoas, fez fila para atravessá-la. Por cima era proibido. Ordem de seu Alcides, o chefe da estação, desde a morte do velho Apolinário. Enlouquecido pela bebida, o negro alto e esquálido decidiu enfrentar aquele mostro de ferro que, para ele, era como se fosse um dragão expelindo fogo e fumaça pelas ventas. Monstro que todos os dias o impedia de ver lá em baixo, estendida sobre um leito de pedras, bela e sedutora, uma sereia que o convidava, com voz melodiosa, para cair nos seus braços.

Por baixo, sob a estrutura que sustentava os trilhos, havia uma passagem de madeira, deixada pelos construtores após o término das obras. Chamada de tabuado, estremecia a cada pisada, fazendo um bum, bum, bum que ecoava repetidamente nos grotões dos dois lados do Mogi Guaçu. No seu leito as pedras pontiagudas manchavam o claro das águas, divididas pelos pilares de concreto e ferro, qual sentinelas vigiando a correnteza. Era tempo de rasura e via-se claramente o fundo do rio. Um lambari tambiú boiou no bloco de espuma que deslizava pelo canal.

Bum, bum, bum e o grupo chegou ao fim da travessia. Os pescoços estiraram-se à procura. Ao pé da escada, na base da cabeceira, lá estava o bicho, a fera. Uns despencaram degraus a baixo, outros, mais apressados, desbarrancaram pelo aterro. Lá estava a fera. As manchas pretas pintavam um corpo de pelo amarelado, carregado com o marrom sujo da terra.

Lá estava a fera! “Dinho” mirou sério o rosto de “Mão-de-gancho”, recordando as estórias horripilantes sobre onças que ouvira da boca do pescador. Causadoras dos arrepios sem fim, elas o perseguiam e atormentavam-no com pesadelos que invadiam suas noites, as quais deveriam ser de sonhos infantis.

— U sinhô contô qui onça tem mais di treis metro…

“Mão” coçou o queixo coberto pela barba de dias procurando uma saída. Afinal, esta era a primeira onça que, na verdade, seus olhos estavam vendo. Com certeza haveria maior que aquela…

— Bão, das grandes tem, né. Mais isso aí – apontando o animal -, óia ,isso num passa di um gatinho, “Nego”. É fioti di poca idadi…

Filhote. Todos puderam ver, finalmente, o bicho que a “Estreitinha” havia caçado. Um filhote de onça que não chegava ao tamanho de um gato vira-latas. Fora apanhado pelo meio do corpo. Via-se isso pela barrigada exposta, o fedor de bode pairando no ar. Com o impacto fora atirado de uma boa altura, caindo sobre a base de cimento, por pouco não resvalando para o leito do rio. Pelos rastros de sangue dava para depreender que antes de expirar ainda rastejara pelo cimento áspero e lutara ingloriamente contra a morte.

Na parede de basalto que sustentava o aterro as pedras mais pareciam formar uma lápide a espelhava um epitáfio: “Aqui jaz um corpo inerte, outrora ágil e esperto, cujo destino seria carregar a fama de mau”. Na verdade inflexível da natureza não passou de um pequeno filhote de onça. Morava em seu coração a pureza da infância e teve por sonho conhecer o mundo e suas coisas mais belas. E até ser, um dia, um gato. Desses que ficam ronronando no colo das mulheres, distribuindo ternura em cada um dos fios de seus pelos e recebendo carinho de mãe.

Lá estava a fera. Estrebuchada. Os homens rodearam-na, olhares curiosos de uns e ar de desapontamento de outros. E o grande caçador? Onde estaria? Por que não viera reclamar seu troféu e desfilar diante de todos o seu peito estufado, inchado de orgulho? Não! Por nada neste mundo. E se aquela fera de presas aguçadas revivesse e com um salto no ar, num piscar de olhos, as garras afiadas, o alcançasse, rasgando seu corpo, dilacerando seu ventre, esguichando seu sangue pelos lanhos da carne? Onde estaria esse caçador?

Estava além, na estação, bufando um rolo de fumo que o vento varria para os confins do espaço, desenhando sombras vivas no chão e escurecendo as nuvens-carneirinhos que pastavam nos campos do céu.

Lá estava a fera. Os olhos sem brilho, a boca arreganhada, como que querendo enfrentar o mostro crescendo à sua frente.

“O Filhote”, romance de Plínio Vicente da Silva, está sendo publicado em capitulos.  

Para ler os três capítulos anteriores.

Para ler a partir do primeiro capítulo. 

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