Montand, Semprun, o Brasil e eu

Aquilo deve ter sido, sem dúvida, uma coisa louca, inimaginável, emocionante, de arrepiar, de dar taquicardia: no Maracanãzinho lotado, Yves Montand anuncia que vai apresentar “Les Bijoux”, de Baudelaire.

E fez-se silêncio. Um silêncio como o gelo que queima. Quatorze mil pares de olhos arregalam-se, paralisam-se, fixam-se nesse homem imóvel, aparentemente desenvolto e relaxado, tranqüilo, mas cuja tensão contida se advinha. A pulsão vital.

O Maracanãzinho em absoluto silêncio, por alguns segundos, durante um espetáculo musical – não um show de rock, cheio de adolescentes, mas um espetáculo musical de um senhor de uns 60 anos de idade, francês, falando nessa língua que tão poucos brasileiros dominam. O senhor de uns 60 anos de idade, calça e colete de veludo preto cotelê, o colete aberto sobre uma camisa branca, anuncia que vai apresentar um poema de Charles Baudelaire, morto uns 120 anos antes – e Maracanãzinho faz absoluto silêncio para ouvi-lo.

Não é à toa que o escritor e roteirista Jorge Semprun escolheu exatamente esse momento para abrir seu livro Yves Montand: A Vida Continua, não propriamente uma biografia do extraordinário ator, cantor, showman, mas um “retrato-ensaio” sobre o artista e sua relação com a política, o mundo.

O parágrafo de Semprun que reproduzi acima vem logo na primeira página do livro. Uma dúzia de páginas adiante, ele escreve:

Montand está terminando de cantar “Les Bijoux”. Quatorze mil brasileiros retêm a respiração. (.,..) No enorme silêncio que se segue, ouve-se a multidão retomar o fôlego. Percebe-se, tal como um zumbido de floresta, a respiração liberada dessa multidão. Depois, numa fração de segundo, estoura uma ovação, retumbante, interminável, enfunando através das arquibancadas como um vento de tempestade.

Volto-me para Catherine Allégret (a filha de Simone Signoret, mulher de Montand, na foto grande abaixo).

Olhamo-nos, a boca ainda seca, os corações ainda úmidos. Aí está, o equilibrista chegou até o fim de seu fio, estendido lá no alto, sob os arcos.

Ele venceu.

E nós temos a impressão, num riso incontrolável, de haver ganho com ele, neste estádio do Maracanãzinho, onde os espectadores, de pé, não param de aplaudir.

– Ele é doido, esse sujeito é doido – murmura Catherine na glória.

A maior turnê da vida do gigante Montand

A apresentação de Yves Montand no Maracanãzinho, na noite de 31 de agosto de 1982, fez parte de uma turnê mundial do artista, a maior de sua carreira. Foi uma temporada que se iniciou em outubro de 1981, no palco do Olympia, a sala de espetáculos construída em 1893 que é o coração da canção francesa. Todos os grandes da canção francesa já se apresentaram no Olympia – Jacques Brel, Edith Piaf, Georges Bécaud (Lelouch filmou parte de uma apresentação de Bécaud ali, para seu filme Toda uma Vida), Charles Aznavour, Charles Trenet, Johnny Hallyday e Sylvie Vartan, Georges Moustaki…

(Mary conseguiu me levar a Paris em 2003 porque, numa noite em que ela pela bilionésima vez tentava de convencer a enfim fazer a viagem, fiz um desafio bêbado: “Só se for pra ver um show do Moustaki”. Meses depois ela reservou dois lugares na sexta fileira da platéia do Olympia, onde Moustaki se apresentaria em curta temporada. Mas esta é outra história.)

Montand já havia se apresentado no Olympia em diversas ocasiões, sempre com a casa de Bruno Coquatrix, de maravilhosas poltronas forradas de veludo vermelho, boca de cena enorme, acústica perfeita de catedral, cheia, abarrotada. A temporada de 1968 tinha ficado na memória de milhares de pessoas. Em 1974, fez um único espetáculo, para recolher fundos para os chilenos exilados após o golpe militar que derrubou Salvador Allende em setembro do ano anterior.

Em outubro de 1981, iniciou uma série de apresentações ao longo de três meses no Olympia, sempre lotando a casa. De Paris, saiu em turnê pela França, e depois por alguns privilegiados países europeus – Suíça, Bélgica, Alemanha Federal, Holanda. Voltou para mais algumas semanas no Olympia, e, em 26 de agosto de 1982, iniciou a turnê mundial pelo Brasil. Cantou no Municipal de São Paulo, após a entrega dos Prêmios Molière, e depois no Teatro Nacional de Brasília, no Municipal do Rio e no Maracanãzinho.

Depois do Brasil, Montand apresentou-se nos Estados Unidos: no Metropolitan Opera House de Nova York, no Kennedy Center de Washington, no Orpheum Theater de San Francisco, no Greek Theater de Los Angeles. Depois subiu ao Canadá, para shows em Québec, Ottawa e Montreal. Para terminar no Japão, com apresentações em Tóquio, Osaka e Yokohama.

Um livro descoberto por puro acaso – uma maravilha

Jorge Semprun, espanhol de nascimento, francês por adoção, diversos romances publicados, autor de roteiros para alguns dos maiores cineastas europeus, acompanhou o amigo Yves Montand em quase todas as apresentações dessa turnê. Tinha já o projeto de escrever o livro, e a excursão ao redor do mundo serviria como um dos fios condutores de seu texto. O livro sairia na França como Montand – La Vie Continue, pelas Éditions Denoël, em 1983, e seria publicado no Brasil no mesmo ano pela Nova Fronteira, com tradução – bem cuidada, muitas vezes abertamente bela – de Rita Braga.

Descobri o livro bem por acaso, em visita à casa do meu irmão Geraldo, onde havia um exemplar comprado (e nunca lido) por nosso irmão Floriano; depois que se começa a ler, não dá para parar. É um deslumbre o texto de Semprun, de uma riqueza fascinante, tão fascinante quanto a trajetória de Montand, um dos grandes artistas do século XX. Ao ler Montand: A Vida Continua, e ao verificar que exemplares ainda podem ser encontrados no site estantevirtual, que reúne dezenas e dezenas de sebos, pensei em escrever alguma coisa sobre ele – se uma única pessoa se animar, a partir daqui, a comprar um livro, já terei sido útil.

Acabei resolvendo fazer dois textos, em vez de um só, porque a trajetória política de Montand – e de Semprun – é tão importante, tão marcante, que tem que ter uma anotação específica sobre ela. Para este segundo texto aqui, pensei em destacar, como um chamariz para o livro, alguns pontos em que o autor fala do Brasil que conheceu naquele início dos anos 80, a época em que a ditadura agonizava, já tinha havido a anistia, começava a haver a reorganização partidária após a camisa de força de Arena x MDB, o partido oficial e a oposição consentida.

A visão de um intelectual europeu sobre São Paulo, sobre Brasília

Semprun se assustou com a ‘enormodernidade’ tropical e capitalista de São Paulo. Sensível, atento, viu de cara a grande ferida da metrópole que escolhi para viver: Vestígios do passado raríssimo, pelo menos à primeira vista. Infelizmente, não é só à primeira vista. O Teatro Municipal, onde Montand vai cantar, é uma dessas raras exceções: deve datar do início do século, é uma espécie de documento histórico.

E um pouco mais adiante:

Espero que chegue logo a hora de tomar o carro, de atravessar a cidade barulhenta e úmida, para chegar ao Teatro Municipal, numa praça mais ou menos preservada, quase verdejante, um pouco provinciana e encantadora, no meio da rede de vias de grande circulação, que se entrecruzam em vários níveis. Espero que penetremos na brusca frescura da ampla sala à italiana, na qual se advinham na penumbra os vermelhos escurecidos e os ouros patinados.

Uma acurada descrição do Municipal, da Praça Ramos ao lado, o Viaduto do Chá, o Anhangabaú embaixo – o Centro da maior cidade do país, um Centro hoje tão abandonado, pixado, sujo, ainda imponente, mas agredido, desleixado, apesar de todas as tentativas do poder público e da iniciativa privada em revitalizá-lo. O Centro de São Paulo, penso aqui hoje, pode até ter sido vítima da incúria do Estado, mas na verdade aviltado foi pelas pessoas, pela sociedade, por nós mesmos.

Poucas grandes cidades brasileiras conseguiram preservar bem suas áreas centrais. São Paulo, a maior de todas, infelizmente é o pior destes tantos tristes exemplos. Semprun captou muito bem o desencanto que o Centro de São Paulo inspira.

Mais acurada ainda é descrição de Semprun faz de Brasília.

Um ex-colega de Estadão-Agência Estado, um gaúcho exilado no Planalto, cujo nome infelizmente me escapa, definiu a capital federal com brilho, durante um período em que eu mesmo estive exilado lá por algumas semanas:

– “Brasília não é uma cidade, é um autorama!”

Depois da definição rascante do gaúcho, eis a do cidadão do mundo Jorge Semprun:

A embaixada da França, um prédio de beleza simples, dando para a paisagem ambiente, localiza-se obviamente no setor das embaixadas. Em Brasília há um setor para cada coisa, para cada atividade. É uma cidade inventada por um homem, Kubitschek, e implantada por uma comissão de urbanistas e de planejadores, bem no centro da savana brasileira dos altiplanos. Uma cidade multicor nascida de uma vara de condão voluntarista no solo de laterita vermelha, em meio às abundâncias verdejantes, luxuriantes de vegetação. Portanto, como todo produto da imaginação racional dos homens, Brasília é um delírio. (…) Às vezes, em compensação, o delírio tende à monotonia burocrática, ao urbanismo arbitrário. Há um setor para as embaixadas, um setor para os engenheiros, um setor para os açougues e armazéns, um setor para as atividades culturais. Talvez um dia, se a cidade conseguir humanizar-se com o tempo, isto é, escapar do peso burocrático que no momento planeja todas as suas pulsões, talvez um dia haja um setor para a vida. A vida boa ou má, pouco importa, mas a vida afinal. No momento, não há um setor para a vida. Realmente não se fez um setor para a vida nessa cidade de sonho.

Que absoluta maravilha!

A sorte poupou Montand de conhecer aquilo que viria a ser um embuste

Quando passou pelo Brasil, em 1982, naquele distante tempo em que muita gente de bem admirava um jovem dirigente sindical do ABC paulista, Montand quase o conheceu pessoalmente. O acaso acabou por poupá-lo do que teria sido seguramente mais uma de suas decepções, entre tantas as que teve com políticos ditos de esquerda que depois se provariam não mais que blefes, embustes.

Semprun narra uma conversa que teve com Montand, num restaurante de frente para o mar – imagino que em Copacabana -, onde foram comemorar a apoteose do Maracanãzinho. O restaurante havia sido fechado para o grupo. Beberam-se caipirinhas – batida à base de aguardente, comparável aos mojitos cubanos –, cervejas. Algumas pessoas foram indo embora, Semprun e Montand foram ficando, até que as primeiras luzes do dia começaram a ser vistas sobre o mar, através das vidraças:

Montand me fez perguntas sobre as pessoas com que eu me encontrara. Falei-lhe de Fernando Gabeira. Lembra-se da noite em sua casa, em Autheuil, com Régis? (Régis Debray, famoso desde maio de 1968, que, uma noite, acompanhado por uma brasileira na casa de campo de Montand e Simone Signoret, discutiu violentamente com Semprun, defendendo Fidel, o Che, a idéia de espalhar vietnãs, como se dizia na época, pela América Latina.) Ele se lembrava. Muito bem até. (…) Falamos de Régis. Depois, contei-lhe minha entrevista com Lula, o dirigente sindical dos metalúrgicos de São Paulo, candidato às eleições. Em São Paulo? E por que não fui com você?, perguntou-me. Por pouco não ficava ressentido comigo pelo fato de ter ido sozinho a essa entrevista. Mas você estava ensaiando com os músicos, digo-lhe. Ele sacode a cabeça, ainda assim sente-se frustrado. Quer que lhe conte a entrevista detalhadamente.

(Na foto logo abaixo, Montand e Edith Piaf.)

Jornalistas brasileiros no livro de Semprum

Semprun transcreve trechos do que a imprensa brasileira falou sobre os shows de Montand. Traz trechos de Rubens Ewald Filho no Estadão, de Pepe Escobar na Folha, da falecida Manchete, do Jornal de Brasília (não deve ter anotado os nomes dos autores destes últimos textos, porque não os cita). Fala um trecho de um perfil de Montand publicado na revista Nova por Rodolfo Konder, e escreve:

Sei que Rodolfo e Leandro são irmãos, porque conheço bem este último, Leandro Konder. É um velho amigo. Ou seja, é jovem, mas somos amigos há muito tempo. Conheci Leandro Konder em Paris há vários anos. Ele estava exilado. Foi um dia à minha casa, a fim de gravar uma entrevista.

Semprun demorou a dar a entrevista, mas Leandro insistia. Até que mandou para o escritor uma bem-humorada ameaça: ou Semprun dava enfim a entrevista, ou o brasileiro redigiria sozinho as perguntas e as respostas, e diria que ele, Semprun, era um admirador de Georges Marchais. Imediatamente, como me fizera rir, obteve meu texto.

Para lembrar: Georges Marchais era então o líder máximo do Partido Comunista Francês – e Semprun tinha por ele o maior desprezo. Ele e também Montand. Artistas, intelectuais, sensíveis, inteligentes, ex-comunistas, Semprun e Montand desprezavam tudo o que dizia respeito aos velhos Partidos Comunistas, ainda e sempre apegados ao que ditava o Partido Comunista pai e mãe, o da União Soviética.

Mas aí estou me confundindo – o texto sobre Semprun, Montand e a política é o outro, não este aqui.

Talvez esteja me confundindo propositadamente, quem sabe influenciado pela própria leitura do livro de Semprun, que teimosamente mistura as coisas, o político e o pessoal, o relato sobre Montand e o relato de sua própria vida. Ao escrever sobre Montand, Semprun é sempre confessional, pessoal, personalíssimo. Seu texto insiste teimosamente em lutar contra a cronologia, assim como sua personalidade insistiu a vida inteira teimosamente em lutar contra a ordem unida do Partido Pai e Mãe.

O texto sobre o livro acabou. Agora falo sobre Montand, Semprun e eu mesmo

Pois então termina aqui esta segunda anotação sobre Yves Montand: A Vida Continua. Se alguma pessoa distraída passar por este site, o recado está dado: estão à venda, ainda, alguns exemplares deste livro delicioso, fascinante, de texto belíssimo, que emociona e faz pensar. É só entrar nesta página do site estantevirtual – após alguns dias, o eventual distraído leitor terá em casa o livro.

Mas, já que estou com a mão na massa, vou em frente nesta anotação. Agora ela passa a ser ainda mais pessoal – uma pálida imitação do que faz Jorge Semprun em seu livro.

Tive uma paixão absurda pelo texto de Semprun e pela interpretação de Yves Montand quando era ainda adolescente e vi pela primeira vez A Guerra Acabou, que Alain Resnais fez em 1966 (na foto do filme, Montand com Ingrid Thulin). Semprun já estava, naquela época tão distante, uma década antes da queda da ditadura do generalíssimo Franco, apenas dois anos depois do golpe militar de direita no Brasil, antes ainda dos golpes militares de direita no Uruguai, na Argentina e no Chile, se desentendendo com a nomenklatura do Partido Comunista Espanhol, servo fiel do PCURSS. O personagem que ele criou para ser interpretado por Montand já questionava os métodos, as escolhas do partido.

Tantas décadas passadas, ainda me lembro bem de como Diego Mora, o personagem de Montand, dizia para si mesmo que os altos dirigentes do partido achavam que a proximidade da realidade o estava cegando, fazendo com que ele deixasse de ver as coisas como elas deveriam ser vistas.

Radicado na França, assim como o próprio Semprun, Diego Mora fazia viagens clandestinas à Espanha sob a ditadura de Franco, para levar aos camaradas do partido as diretrizes vindas da secretaria-geral. Exatamente como Semprun. E Diego Mora, também como seu criador, revolvia-se em dúvidas.

Em Paris, longe da Espanha sob a ditadura, os dirigentes diziam que a proximidade da realidade estava cegando Diego Mora, fazendo com que ele deixasse de ver as coisas como deveriam ser vistas.

As conversas de Diego Mora consigo mesmo estão presentes na minha cabeça há quatro décadas. Jamais consegui esquecê-las.

Montand, o Cine Guarani, Marilyn Monroe

Esqueci, no entanto, por que raios não fui ver Montand no Municipal, em 1982. E por que raios, tendo perdido o show de Montand no Municipal, não fui vê-lo no Maracanãzinho.

A primeira vez que vi Yves Montand – constato, vendo meu primeiro caderninho em que anotava os nomes dos filmes a que assistia – foi em 1962, aos 12 anos de idade, portanto. Quando Marilyn Monroe morreu, o Cine Guarani, na Rua da Bahia, logo acima da Augusto de Lima, fez um festival, um filme de Marilyn a cada dia. Vi quase todos, inclusive Adorável Pecadora/Let’s Make Love, de 1960.

Todo mundo está (ou pelo menos estava) cansado de saber que, naquela época, fazendo alguns filmes em Hollywood, Montand e Marilyn se comeram. Marilyn estava então casada com Arthur Miller, mas Marilyn sempre comeu todo mundo que lhe passava à frente, o presidente Kennedy inclusive, é claro. Kennedy era outro grande comedor, me ocorre agora, e comeu até mesmo Gene Tierney, meu Deus do céu e também da terra, mas essa é outra história. Montand, no entanto, se é que comia fora de casa, comia quieto, ao contrário do personagem que Lelouch o fez interpretar em Viver por Viver, de 1967. Montand era casado desde sempre com Simone Signoret, e viveram juntos, imagino que felizes, até o fim de suas vidas.

Mas o caso de Montand com Marilyn – ou, vá lá, de Marilyn com Montand – fez a alegria do jornalismo sensacionalista, naqueles idos tão distantes de 1960. Quem pensa que o jornalismo sensacionalista, explorador das privacidades dos famosos, começou ontem, ou dez anos atrás, ou 20 anos atrás, é jovem e não sabe de nada do mundo.

Amigo de Montand mas também amigo de Simone (não seria possível ser um amigo de um sem ser da outra), Jorge Semprun procura ser o mais discreto possível, ao abordar esse tema, ao final de seu livro. Esperto, usa um dado inequívoco da realidade para tratar do assunto – uma longa matéria na New York Magazine sobre Montand, publicada em 1982, na época em que o artista iria se apresentar, durante sua turnê mundial, no Metropolitan Opera House. Numa página dupla, publicaram-se três fotos, como Semprun nos relata: uma do extremamemente jovem Yves Montand ao lado de Edith Piaf (sim, a diva feia, comedora insaciável, havia comido um extremamente jovem Montand, assim como havia também comido um extremamente jovem Georges Moustaki), um Montand já maduro ao lado de Marilyn, e um Montand ao lado da esposa.

E aí fico pensando: é preciso ser Simone Signoret para saber que o marido comeu Marilyn Monroe (ou foi comido por ela, tanto faz), e continuar casada para todo o sempre com ele.

Não existem muitas Simone Signoret no mundo.

Simone Signoret perguntava-me um pouco irritada: “Não acha que já basta? Ainda vão falar por muito tempo de Montand e Marilyn?

A frase está quase no finalzinho do livro de Semprun – Simone, Montand e Semprun estavam em Nova York para a apresentação do cantor-showman no Metropolitan, a imprensa americana insistia em lembrar que aquele senhor francês havia tido um caso com Marilyn, e, é claro, aquela grnade atriz, grande mulher, reclamava, com toda justificativa do mundo.

Montand traiu Simone, o personagem de Montand traía o de Ingrid Bergman

Mas acho que estou de novo misturando estações. Esta parte aqui da anotação não seria para falar de Montand, Semprun e eu mesmo? E então por que estou falando da carreira e da vida de Montand?

O segundo filme que vi com Montand, pelo que mostra meu caderninho de criança, foi em 1964. Nunca mais o revi, pelo que eu saiba não saiu em VHS, nem DVD, mas tenho dele lembranças nítidas – Mais Uma Vez, Adeus, título original Goodbye Again, ou Aimez-vous Brahms?, de 1961, dirigido por Anatole Litvak, nascido em Kiev, Ucrânia, radicado em Hollywood a partir de 1937. Montand faz, no filme de 1961, um ano após Adorável Pecadora, um personagem parecido com o que faria em Viver por Viver, o de um tremendo comedor fora de casa – com a esquisitice absoluta de que em casa ele tinha Ingrid Bergman.

A personagem interpretada por Ingrid Bergman – traída pelo marido como a personagem de Annie Girardot seria no filme de Lelouch (na foto abaixo) – torna-se o objeto da paixão do jovem interpretado por Anthony Perkins. Vão juntos a concertos em que ouvem a Terceira de Brahms – e desde a época em que vi o filme pela primeira e acho que única vez, em 1964, tive e tenho imensa admiração por Brahms e, em especial, pelo terceiro movimento da Terceira Sinfonia.

Algumas pessoas têm sortes na vida

Era mais velho, tinha 18 anos, acabava de mudar para São Paulo, quando vi, no Cine Belas Artes, Montand interpretar Diego Mora em A Guerra Acabou. E Diego Mora, além de ser um personagem extraordinário, comia, filho da mãe, a personagem interpretada por Ingrid Thulin. Ingrid Thulin, a atriz de Morangos Silvestres, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, O Silêncio.

Não consigo me lembrar extamente quando foi que me apaixonei pelo cantor Yves Montand. Sei, no entanto, dizer exatamente onde e quando li e ouvi pela primeira vez Jacques Prévert – o livro de Semprun fala trocentas vezes de Prévert, o poeta que Montand cantou como ninguém mais, autor da letra de “Les Feuilles Mortes”, uma das canções sempre presentes no repertório do artista. Ouvi falar pela primeira vez em Prévert e li Prévert pela primeira vez na vida em 1962, na Rua Carangola, a continuação da Rua da Bahia, porque tive a sorte de ter Vivina de Assis Viana como professora de francês no Colégio de Aplicação. Há pessoas que têm mais sorte na vida do que outras.

(Aqui, um Montand muito jovem cantando “Les Feuilles Mortes”; aqui, o Montand maduro cantando a mesma canção de Joseph Kosma e Jacques Prévert.)

Tive a sorte de ver shows de quase todos os meus maiores ídolos

E, então, a questão das sortes. Mais ou menos na mesma época em que Montand veio ao Brasil, fui ao Municipal ver Moustaki, também num show após a entrega dos Prêmios Molière. Montand se apresentou no Municipal em 1982, e portanto Moustaki deve ter participado da festa dos Molière em 1983, ou 1984. Talvez tenha sido pela consciência de ter perdido o show de Montand – não me lembro, realmente não me lembro, e naquela época fazia poucas anotações pessoais, envolvido com muito trabalho e um período de vida pessoal atormentado – que, ao saber que Moustaki seria o convidado, tenha dado um jeito de conseguir um convite.

Parece ridículo, e é realmente ridículo, mas naquela época se exigia que, para entrar no Municipal para assistir à entrega dos Molière e em seguida ao show de um grande artista francês, as pessoas botassem traje de gala, o que chamamos de smoking.

Sempre detestei terno e gravata, mas, naquele início dos anos 80, para ver Moustaki, aluguei um smoking, pela primeira vez na vida. O convite, não me lembro como consegui, mas certamente foi através de Regina, então editora na Abril, cheia de contatos.

O show de Moustaki no Municipal não foi glorioso. Ao contrário. A imensa maioria das pessoas não conhecia Moustaki – ele é bem menos conhecido que Montand, evidentemente. As pessoas iam deixando o Municipal enquanto Moustaki cantava.

Mas valeu, ah, valeu ter visto Moustaki cantar.

O show dele que vi com Mary na sexta fila do Olympia de Paris em 2003 foi muitíssimo melhor.

Mas o que não consigo entender é por que não tentei ir ao show de Montand.

Naquela mesma época, fui ao Maracanãzinho ver o primeiro show de Mercedes Sosa no Brasil. Algum tempo depois, levei Fernanda e Inês ao Maracanãzinho para ver Tetê Espíndola cantar, numa final de festival, “Escrito nas Estrelas”.

Tive a sorte, a felicidade, o privilégio de ver shows de quase todos os meus maiores ídolos.

Jamais vou me perdoar por não ter visto ao vivo Yves Montand.

Março de 2010

8 Comentários para “Montand, Semprun, o Brasil e eu”

  1. Sérgio,

    tô te lendo, emocionada. Novidade nenhuma.
    Você me emociona desde 1962, na Rua Carangola, quando nenhum de nós poderia imaginar que seguiríamos assim, amigos, quase irmãos.
    Saiba que não foi só você que teve sorte na vida.

    Beijo
    Vivina

  2. Yves tinha razão em ficar chateado, pois perdeu a oportunidade de conhecer o “embuste” que tiraria o Brasil da estagnação e que honrou este país e sua gente ao valorizar seu povo, levando o mundo a reconhecer sua importância. Com certeza Ives gostaria imensamente de tê-lo conhecido.

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