Antônio Carvalho Mendes, RIP

Antônio Carvalho Mendes adorava o que fazia. Só essa característica já bastaria para torná-lo um jornalista diferente da imensa maioria: em geral, os jornalistas gostariam de estar fazendo outra coisa, cobrindo outro tipo de assunto, trabalhando em alguma outra função, numa outra empresa, num outro veículo de preferência com salário melhor que o seu, é claro – ou simplesmente prefeririam não estar trabalhando. No mínimo, no mínimo, nos raros casos dos que gostam do que fazem, reclamam sempre do patrão.

Antônio Carvalho Mendes adorava os patrões, e adorava trabalhar exatamente naquilo que fazia. Gostava tanto de trabalhar que não folgava nos fins de semana. Não folgava nunca. E nem gostava de tirar férias. De preferência, não tirava férias.

Durante mais de quatro décadas, todos os dias, sábados, domingos, feriados, Natal, véspera de ano novo, Antônio Carvalho Mendes cuidou da página de falecimentos do Estadão. Várias gerações de jornalistas que passaram pelas redações do Estado e do Jornal da Tarde o conheceram por diversos nomes: Seu Antônio. Toninho. Seu Toninho. Mas os principais, os mais usados, com aquela ironia fina como palha de aço que os jornalistas costumamos ter, eram Toninho Boa Morte, ou seu igual mais metido a refinado, Anthony Good Death.

Os mais antigos, os da minha geração e da que veio antes da minha, em geral não usávamos nome algum para designar Seu Antônio: batíamos três vezes na madeira – tóc, tóc, toc. Fazíamos isso também em relação a um velho fotógrafo e a um velho homem de texto, que tinham fama de dar tremendo azar a quem pronunciasse seus nomes. Não vou pronunciá-los.  

Me deu vontade de escrever alguma coisa sobre Seu Antônio – mesmo correndo o risco de virar motivo de chacota. A pior coisa que pode acontecer com um jornalista quando morre é não haver ninguém que escreva alguma coisa sobre ele. O ideal é que o obituário do jornalista seja escrito por um amigo, para que não fique um texto gelado, anódino. Não fui amigo do Seu Antônio. Mas me deu vontade de escrever alguma coisa mesmo assim.

Uma idéia brilhante – mas quem sabia que era dele?

Seu Antônio morreu aos 77 anos, nesta terça-feira, 15 de março. O velório será no Cemitério do Araçá, e o sepultamento, na quarta-feira, em Santos.

Fui dar uma olhada no estadao.com.br, e vi que está lá um bom texto sobre Seu Antônio. Aliás, um texto muito bom: nada gelado, nada anódino. Ainda bem. Fico contente. Não era necessário o meu – mas agora já comecei.

E aí vão uma informação e uma confissão. A informação está no texto do portal do Estadão: “Foi de Antônio Carvalho Mendes a sugestão para que o Estado publicasse versos de Luís de Camões, para cobrir o espaço das matérias censuradas que a polícia não permitia deixar em branco. Deu a ideia ao redator-chefe Oliveiros S. Ferreira e o diretor do jornal, Julio de Mesquita Neto, aprovou. Toninho levava de casa um exemplar de Os Lusíadas para adiantar a composição do texto na gráfica.”

A confissão: nunca soube disso. Cheguei ao Jornal da Tarde em 1970, nem dois anos depois do início da censura prévia ao Estadão e ao JT; convivi com Seu Antônio no mesmo ambiente ao longo de 30 anos (tirando fora uns seis anos em que por duas ocasiões me aventurei fora da S.A. O Estado de S. Paulo), e jamais soube que tinha sido dele a idéia dos versos de Camões. O fato de o Estadão ter resistido à censura prévia pós-AI5 publicando versões de Camões (no JT, eram receitas culinárias) já foi cantado e decantado em prosa e verso – e no entanto a autoria da idéia nunca foi muito badalada.

É bem típico de Antônio Carvalho Mendes.

O homem mais solitário que já conheci; tremendo reaça – e ficamos do mesmo lado

Só umas poucas coisinhas.

Ele me parecia um homem extremamente solitário.

Era um tremendo de um reacionário. Udenista fanático, lacerdista fanático, entusiasta do golpe de 1964. Só ficou contra o golpe quando os milicos puseram censores dentro da redação da Major Quedinho. Porque, acima de tudo, acima de qualquer outra coisa, era fiel aos Mesquita. Era fanático com os Mesquita.

Era homem de paixões e ódios absolutamente figadais. Não escondia nada, nem as paixões, nem os ódios. O contínuo mais foca do jornal sabia quem ele odiava profunda, fidagalmente – entre outros, o diretor de redação do Estado a partir de 1988, e o autor do Manual de Redação. Falava mal deles para quem passasse pela sua frente.

E quase todo mundo no jornal gostava de falar mal dele, de fazer gozações com ele.

O tempo passa, as coisas mudam, e nos anos 2000 eis que muitos de nós passamos a partilhar com Seu Antônio, o tremendo do reacionário, sua aversão a Lula, ao lulo-petismo. “Chefe, a coisa tá feia”, ele dizia, sempre que passava por alguém que ainda reconhecia dos velhos tempos. Às vezes eu tentava fugir dele, nas andadas pelo corredor, nas idas ao fumódromo, mas ele era implacável: “Chefe, a coisa tá feia”.

O “chefe” era o jeito de ele tratar todo mundo. Estava para ele como o “bicho” estava para o Rei Roberto.

Um símbolo do passamento de toda uma época

Que não falassem em computador para Seu Antônio.

O Estadão entrou no mundo da informática em 1989, se não me falha a memória. E entrou pela porta errada, com um sistema absolutamente burro, idiota, um tal de Atex, uma coisa que já era velha, caquética, quando começou a ser implantada. Seu Antônio continuou firme na Olivetti.

Vários anos mais tarde, vieram os computadores de verdade – Seu Antônio continuou firme na Olivetti.

Uma vez, poucos anos atrás, precisei pedir a ele o favor de dar uma nota de falecimento na coluna dele. Perguntei, pelo telefone, se poderia passar um e-mail. Ele não mexia com isso: pediu que eu passasse por fax, que ele transcreveria na Olivetti. O fax já era algo obsoleto.

Todo mundo pedia favor a ele, na hora dura, na hora da morte de um amigo, um parente. Ao atender um telefonema desses, ele costumava ser seco – ao menos é essa a lembrança que eu tenho. Mesmo com as pessoas que o tratavam bem, como eu. Era seco, quase ríspido – profissional, frio. Mas sempre atendia aos pedidos.

Conta-se que alguns dos Mesquita pediam os favores mais absurdos a ele, do tipo levar uns tantos cachorros do Pacaembu para a fazenda em Louveira, ou vice-versa – Seu Antônio gostava de cachorros, teve durante anos uma coluna de cinofilia –, e outros favores ainda menos dignos. Ele atendia a todos com alegria e orgulho. Tinha imensa alegria e orgulho por se considerar amigo da família.

Aquela empresa ali foi uma família para muita gente.

A morte de Seu Antônio é um tanto emblemática: é um sinal forte do passamento de toda uma bela época, uma boa empresa, dois grandes jornais.

15/3/2011

9 Comentários para “Antônio Carvalho Mendes, RIP”

  1. Sérgio, parabéns pelo teu obituário do Toninho. Ele certamente ficou contente com teu texto, que lembra uma personagem de Tchecov.

  2. Sérgio, quem botou nele o apelido de “Toninho Boa Morte” fui eu. Mas ele preferia dizer que foi o Carlão…

  3. Sergio, lindo obituário. Como o do José Maria Mayrink, que lembra como Toninho era fechado. Eu sabia do Camões, mas nunca soube que ele tinha um filho. E olha que convivemos muito, em longas conversas e em rápidas disputas por espaço nas páginas do caderno Metrópole. Também não sabia que Góes é que criou o Boa Morte. Bela sacada. Saudades

  4. Márcia, Góes e Melchíades, muito obrigado pelas mensagens.
    A informação do Góes é duplamente saborosa: porque informa a origem do apelido, e porque ainda acrescenta outra coisa típica dele – vindo do Carlão, o apelido era um elogio…
    Um abraço.
    Sérgio

  5. Sergio, por estranha coincidência, ontem à noite, reli “Sr. Má Noticia”, perfil do obtuarista do NYT, do Gay Talese, e não pude deixar de lembrar e fazer comparações…

  6. Fui fisioterapeuta do Sr. Antônio até o seu falecimento…entre um exercício e outro, todas essas histórias aqui escritas foram me contadas por ele com muito carinho, de uma época inesquecível para ele…tenho certeza que ele está feliz em saber que ninguém se esqueceu dele….

  7. Sérgio, meu caro, você e o Mayrink estão de parabéns pelas justas homenagens que fizeram, nem um pouco “frias ou anódinas”, ao velho companheiro e à “bela época” que se foram. Abraços.

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