A época é 1972, 1973 – eu, com 22, 23 anos, trabalhava no Jornal da Tarde, já como copy-desk, e em parte por isso tinha abandonado a ECA-USP; namorava Suely, nos casaríamos no final de 73. Ian McEwan, um ano e meio mais velho do que eu, certamente já tinha se formado, com louvor, em uma das grandes universidades inglesas. O mundo em 1972, 1973, que ele pinta em Serena, seu romance de 2012, quando ele estava com 64 anos e eu com 62, consegue ser tão sombrio quanto o que George Orwell pintou na sua distopia 1984, lançada em 1949.
(Mais adiante, fala-se da formação universitária de McEwan.)
A referência a 1984 não é gratuita, de forma alguma. Serena fala de George Orwell. Diz que George Orwell ganhou dinheiro do serviço secreto inglês para fazer suas distopias que alertavam contra o perigo do Império Soviético.
Em Serena – um romance que tem como pano de fundo o trabalho dos serviços de segurança britânicos na área de cultura durante a Guerra Fria –, Ian McEwan pinta a Inglaterra do início dos anos 1970, quando os Beatles tinham acabado de se separar e ele e eu começávamos a entender o mundo após o fim da adolescência, como um país totalitário, onde o Grande Irmão tem olhos sobre cada uma das pessoas.
A Inglaterra que o livro descreve é semelhante à Cuba que sabemos existir – os inspetores de quarteirão informando o Partido sobre os hábitos de cada pessoa, com quem cada um se encontra, o que cada um lê, quem são seus amigos, seus interesses, suas peculiaridades.
A Inglaterra que existiu quando Ian McEwan e eu estávamos chegando ao início da vida adulta é igualinha que nem a que Orwell construiu como se fosse ficção científica.
O governo observa tudo, sabe de tudo, domina tudo. Cada pequeno movimento é observado, gravado, catalogado.
Agentes do governo invadem, na surdina, o quarto de Serena, a protagonista e narradora do romance que leva seu nome, para examinar o que há lá dentro.
Em Serena, Ian McEwan – na minha modestíssima opinião de leitor de poucos livros, o melhor escritor da minha geração, que é também a dele – parece querer dar razão aos doidos, loucos, zuretas, que acreditam em todas as teorias conspiratórias da História.
Sabe aquele personagem doidão, loucão, zuretão, que Mel Gibson interpreta em Teoria da Conspiração? As teorias malucas do detetive John Munch em Law & Order – Special Victims Unit? As mil e uma hipóteses sobre o assassinato de Kennedy?
Pois é. Serena parece apoiar tudo isso, todas as teorias conspiratórias da História.
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Serena afirma, com todas as letras, que, além de George Orwell, também Arthur Koestler recebeu dinheiro – bufunfa, monistrôni, grana, prata – do governo inglês para escrever seus romances sobre as ditaduras parecidas com aquela que criaram na Rússia a partir de 1917.
Mais: um ex-agente da CIA em visita a Londres, um tal Pierre, relata um encontro de artistas e intelectuais, no Waldorf Astoria, em Manhattan, em 1950, que teve o título de Conferência Cultural e Científica pela Paz Mundial, de que participaram, entre outros, o compositor russo Dimitri Shostakóvitch (que teria ido forçado, a mando de Stálin) e os americanos Arthur Miller, Leonard Bernstein e Clifford Odets, esquerdistas, admiradores da União Soviética. O encontro, que de fato aconteceu (na foto abaixo) – diz no livro Pierre, da CIA – foi promovido com o famoso ouro de Moscou.
“Em resumo, Pierre nos disse, o encontro todo era um lance de propaganda para o Kremlim. Eles tinham preparado na capital do capitalismo um palco mundial para si próprios, em que apareceriam como a voz da paz e da razão, se não da liberdade, e tinham dúzias de americanos famosos ao seu lado.”
Para enfrentar esse evento de propaganda financiado pelo ouro de Moscou, a CIA preparou um contra-ataque. Com o apoio de nomes respeitadíssimos de esquerda, mas já descrentes do stalinismo – e o livro cita com todas as letras Mary McCarthy, T.S. Eliot, Igor Stravinski e Bertrand Russell –, a CIA botou gente sua na conferência para fazer perguntas embaraçosas. Escreve Ian McEwan, como se fosse Serena (bem, não exatamente, mas isso é outra história) contando:
“A campanha contra a Conferência foi um sucesso porque ocupou a atenção da mídia e virou manchete. Todas as questões certas foram insinuadas durante sessões da Conferência. Perguntaram a Shostakóvitch se ele concordava com o artigo do Pravda que denunciava Stravinski, Hindemith e Schoenberg como ‘formalistas burgueses decadentes’. O grande compositor russo lentamente se pôs de pé e murmurou sua aquiescência com o artigo e demonstrou estar desgraçadamente preso entre a sua consciência e o medo de desagradar os oficiais da KGB, e do que Stálin faria com ele quando voltasse para casa.”
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O ouro de Moscou. Essa expressão era usadíssima durante a Guerra Fria – mesmo aqui, neste país periférico, tão distante dos centros do poder mundial. Nos anos 1960, quando eu era adolescente, falava-se muito dele. A direita dizia que os comunistas e filo-comunistas do mundo todo, inclusive os nossos, eram pagos com o ouro de Moscou.
Em Serena, Ian McEwan mostra – como no trecho citado acima – que Moscou pagava, sim, pelo apoio de seus simpatizantes. Mas o livro se concentra mesmo é no ouro de Londres – e, secundariamente, fala também no ouro de Washington.
Não há muito espaço, no mundo retratado por McEwan, para idealistas, gente que luta por suas idéias e ideais. Havia uma guerra acontecendo, embora fria, e os dois lados remuneravam seus soldados. No caso, os soldados eram artistas – o livro se concentra especificamente em escritores. É a Guerra Fria na cultura.
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Ian McEwan já entrou na cabeça de um compositor e de um jornalista (em Amsterdam, de 1998), de um neurocirurgião (em Sábado, de 2005), de um físico (em Solar, de 2010), de uma adolescente rica de imaginação fértil e caráter frágil (em Reparação, de 2001).
O bicho é fogo. Pesquisa extensa, extensivamente os assuntos sobre os quais vai escrever, com um rigor extremado. Sábado parece ter sido escrito por um neurocirurgião, Solar, por um físico, Amsterdam, por um compositor e um jornalista.
Para escrever Serena, um livro sobre escritores, literatura, não precisou pesquisar sobre a profissão, já que é a dele. Mas pesquisou sobre a Guerra Fria e os serviços de segurança britânicos. Fiquei impressionado com o número de livros sobre a Guerra Fria que ele cita nos agradecimentos, ao final da narrativa. A edição brasileira, da Companhia das Letras (como os demais livros do autor), não traduziu os títulos das obras, já que elas não foram lançadas aqui. Faço eu uma tradução literal, básica:
A guerra da propaganda secreta da Grã-Bretanha: 1948-1977;
A CIA, a esquerda britânica e a Guerra Fria;
A CIA e a Guerra Fria Cultural;
Escrevendo Perigosamente: Mary McCarthy e seu mundo;
A Teoria e a Prática do Comunismo;
Judas Relutante;
A autobiografia da ex-diretora geral do MI5, Stella Rimington;
A história autorizado do MI5;
A história não oficial do MI5;
Apanhador de Espiões: a sincera autobiografia de um agente de inteligência.
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Serena cita várias vezes o MI6, mas concentra-se mesmo é no MI5. É no MI5 que Serena, a protagonista, vai trabalhar, jovenzinha de tudo, com 22 aninhos e uma beleza que ela mesma reconhece que era uma coisa séria.
O MI6 é mais famoso, mais badalado que seu irmão – e muitas vezes rival – MI5. Há muito mais livros e filmes sobre o MI6. Ele é o Secret Intelligente Service, destinado a prover o governo de informações sobre assuntos do exterior. James Bond e os espiões dos livros de John Le Carré são do MI6. É similar ao que nos Estados Unidos é a CIA, a Central Intelligente Agency.
O MI5 é o Serviço de Segurança, a agência de contra-inteligência e segurança do governo da Grã-Bretanha. O nome pelo qual o Serviço de Segurança é conhecido vem de Military Intelligence, Section 5. Seria um tanto próximo do que nos Estados Unidos é o FBI, o Federal Bureau of Intelligence.
Em suma, simplificando: o MI6 cuida do exterior, o MI5, do interior da Grã-Bretanha.
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Não resisto à tentação de transcrever o lead, o primeiro parágrafo de Serena:
“Meu nome é Serena Frome (a pronúncia é Frum) e há quase 40 anos fui enviada numa missão secreta do Serviço de Segurança britânico. Eu não voltei em segurança. Um ano e meio depois de entrar fui despedida, depois de ter caído em desgraça e acabado com a vida do meu namorado, embora ele certamente tenha tido um pouco a ver com a sua própria queda.”
Brilho de lead.
Escusado dizer que Serena, esse nome tão sereno, pronuncia-se sirína, bem paraxitonamente, mas sem es, e sim is.
No início do segundo parágrafo, ela já avisa: “Não vou perder muito tempo com a minha infância e a minha adolescência.” E, na segunda página, explica: “Nada de estranho ou terrível aconteceu durante os meus primeiros dezoito anos e é por isso que eu vou pular esse período.”
No capítulo 22, o último, muda tudo, e haverá uma outra explicação para se pular o período inicial da vida de Serena – mas essa explicação é ótima, e válida: como nada de estranho ou terrível aconteceu até os 18 anos, fala-se pouco desse período.
Ainda na segunda página da narrativa, Ian McEwan, fingindo que está escrevendo como Serena, faz uma definição sucinta – e perfeita, abrangente, definitiva – de sua personagem:
“Se dependesse de mim, eu teria escolhido fazer uma faculdadezinha preguiçosa de letras numa universidade provinciana bem ao norte ou ao oeste de casa. Eu gostava de ler romances. Eu lia rápido – às vezes dava conta de dois ou três por semana – e fazer isso por três anos teria sido bem a minha cara. Mas naquela época eu era considerada uma aberração – uma menina que por acaso tinha talento para matemática.”
McEwan não diz a data exata, mas Serena é da geração dele, da minha. Nasceu muito provavelmente 1950, ou 1951. Quando se passa a ação, 1972, 1973, ela estava com 22, 23 anos.
A mãe dela era uma perfeita dona de casa, como eram as mulheres de classe média que foram mães desde sempre e até o início dos anos 1950. Mas, como tantas mulheres, em todo o mundo, ou ao menos no Ocidente, no final da década de 1960 a mãe não queria que a filha tivesse uma vida igual à sua; iniciada a revolução feminista, a mãe de Serena agora queria que a filha tivesse um bom diploma que garantisse uma carreira profissional.
“Ela disse que era meu dever como mulher ir estudar matemática em Cambridge”, relata Serena.
(Aí acho fascinante, porque minha sobrinha Valéria estudou matemática na PUC do Rio e progrediu na carreira e virou doutora fodinha em Cambridge, onde fui visitá-la durante uma bela tarde de dezembro, e onde minha filha Fernanda, que, adolescente, estudou inglês algumas semanas em Cambridge, também a visitou.)
E, alguns parágrafos depois: “Então abandonei a minha ambição de cursar letras em Durham ou Aberystwyth, onde tenho certeza de que teria sido feliz, e acabei indo para o Newnham College, em Cambridge, para aprender na primeira aula, que aconteceu no Trinity, o quanto eu era medíocre em matemática.”
Em três páginas, já temos um belo perfil de Serena. Uma moça bonita, muito bonita, e, como eram as moças no início dos anos 70, dada a dar, que se achava boa em matemática mas na verdade gostava mesmo era de literatura.
Depois desse brilho de início, seguem-se 380 páginas brilhantes.
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Uma das trocentas coisas que me fascinam nos livros de McEwan é que ele fala da nossa geração, a minha e a dele. Seus personagens – como Serena – têm a nossa idade, viveram as mesmas experiências nas mesmas épocas: os Beatles, o assassinato de Kennedy, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, a minissaia, o hipismo, as namoradas que enfim começavam a dar, a guerra civil na Irlanda, a Guerra Fria, a dicotomia esquerda x direita.
Serena é, dos que já li dele, o livro mais clara, mais profundamente político.
McEwan é mestre em apresentar diferentes pontos de vista de seus personagens.
Toda a ação do extraordinário Sábado se passa num único dia, o sábado 15 de fevereiro de 2003, quando, em Londres e em diversas outras cidades do mundo, haveria gigantescas manifestações contra a iminente invasão do Iraque pelas tropas americanas e britânicas. O protagonista, o neurocirurgião Henry Perowne, de 48 anos de idade, iria naquela noite receber para jantar os dois filhos, um rapaz e uma moça, que já não moravam com os pais, tinham suas vidas independentes. Henry Perowne não é propriamente a favor da invasão do Iraque, mas é um duríssimo crítico da ditadura feroz de Saddam Hussein, e consegue aceitar a necessidade da invasão. Seus dois filhos, ao contrário, são – como praticamente todos os jovens – furiosamente anti-americanistas, e até capazes de defender o regime de Saddam.
O leitor não fica sabendo qual é a opinião de Ewan McEwan sobre a invasão do Iraque. Conhece bem as opiniões do neurocirurgião, de seu assistente americano, de seus filhos. Não as do autor.
Em Serena acontece mais ou menos a mesma coisa.
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Na minha geração, na de McEwan, era difícil achar algum adolescente da classe média que não fosse ou comunista, ou socialista, ou simpatizante do comunismo e do socialismo.
Difícil. Quase impossível.
Não me lembro de nenhum colega ou professor do Colégio de Aplicação que tivesse apoiado o golpe de 1964. (Eu fazia o antigo quarto ano de ginásio no Aplicação, no ano do golpe.) Vários dos meus colegas já tinham ligações com algum movimento de esquerda.
Éramos todos anti-americanistas, e simpatizávamos com a União Soviética, os países comunistas do Leste Europeu e, claro, com Cuba.
Aplaudíamos freneticamente Os Companheiros, de Mario Monicelli (na foto), nas diversas sessões do Cine Art-Palácio – assim como umas gozações feitas contra os americanos na peça Auto da Compadecida, os shows Opinião e Liberdade, Liberdade.
Éramos todos de esquerda – alguns mais festivos que os outros. Assim como todos os nossos ídolos.
A Serena Frome que Ian McEwan criou, no entanto, leu, muito antes que os jovens brasileiros, os livros de Alexander Soljenítsin.
Isso acabou determinando bastante do que seria sua vida.
Na Guerra Fria, Serena iria se aliar ao Ocidente, contra o comunismo – ao contrário da imensa maior parte dos artistas e intelectuais da época, e de nós, seus fãs.
Não dá para saber com certeza, depois da leitura de Serena, qual a posição política de Ian McEwan quando jovem, nos anos 1970, e quando maduro, hoje. Me parece que ele deve ter sido “de esquerda”, deve ter votado nos trabalhistas a vida toda, mas mais cedo do que muitos da nossa geração passou a criticar a ditadura soviética.
Alguns, como o grande Yves Montand, o grande Jorge Semprum, passaram a criticar a ditadura soviética mais cedo. Outros, como Oscar Niemeyer, para dar o exemplo mais absurdo, continuaram admirando o companheiro Stálin até quando já tínhamos entrado na segunda década do século XXI.
De qualquer maneira, isso que falei das posições políticas de McEwan é puro chute, sensação, feeling. Não se apóia em nenhum fato, nenhum dado da realidade.
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Alguns dados da realidade sobre Ian McEwan, retirados da Wikipedia (minha Britannica, de meados dos anos 1970, a época em que se passa a história de Serena, evidentemente não traz verbete sobre ele):
Ian Russell McEwan nasceu em Aldershot, Hampshire, no dia 21 de junho de 1948, filho de David McEwan e Rose Lilian Violet (nascida Moore). Seu pai era um escocês da classe trabalhadora que dedicou a vida às forças armadas, chegando até o posto de major. Passou parte de sua infância na Ásia, Alemanha e Norte da África, para onde seu pai ia sendo enviado. A família voltou para a Inglaterra quando ele tinha 12 anos. Foi educado na Woolverstoner Hall School, Universidade de Sussex, tendo recebido seu diploma em literatura inglesa em 1970. Na University of East Anglia, foi um dos primeiros formandos nos pioneiros cursos de escrita criativa de Malcolm Bradbury e Angus Wilson.
Angus Wilson é citado algumas vezes ao longo de Serena.
Pai militar, vindo da working class. Hum… Isso confirma meu chute, meu feeling: eu diria agora com mais certeza que Ian McEwan jamais votou no Partido Conservador em sua vida.
Comparações: como McEwan, paguei as contas a vida inteira mexendo com palavras – embora, é claro, sem sequer um trilionésimo do talento dele. E então o filho da mãe obteve seu diploma em literatura inglesa em 1970, aos 21 ou 22 anos de idade. Em 1970 eu fazia cursinho no Objetivo, depois de ter passado dois anos, 1968 e 1969, sem estudar, só trabalhando, para pagar a comida, recém-chegado a São Paulo, pobre de marré-de-cy. Em janeiro de 1971 faria o vestibular que me deu uma vaga na Escola de Comunicações e Artes da USP. Comecei três vezes o curso de Jornalismo, não terminei nenhum.
Tanta coisa diferente – mas a geração é a mesma.
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O que me parece especialmente fascinante é que uma avaliação do romance Serena por qualquer pessoa ainda hoje comunista, socialista, seria oposta à minha. Forçosamente. Necessariamente.
Um petista que eventualmente se aventurasse a ler o livro teria ódio de Serena e de Tom Healy, o escritor que é o trabalho de espiã de Serena e por quem ela se apaixona. Acharia os dois os maiores reacionários do planeta.
Tom Healy não é um tremendo de um reacionário. Como ele mesmo diz, quando o livro já se aproxima do final:
“Defender um poeta romeno preso não me transforma num direitista. Chamar o Muro de Berlim de monte de merda não me transforma num fantoche do MI5. Nem chamar os escritores da Alemanha Ocidental de covardes por ignorarem a porra do muro.”
No que ele está absolutamente correto, digo eu hoje. Não é o que eu diria em 1973, claro. Em 1973, na época em que se passa a ação do livro, eu diria que defender poeta preso pela ditadura de Ceauscescu é coisa de direitista, reacionário, e que o Muro de Berlim foi a forma encontrada pela Alemanha Democrática para se defender dos ataques do capitalismo imperialista.
Ainda bem que o passar do tempo faz as pessoas – algumas pessoas, talvez até a maioria delas – reverem seus conceitos.
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Levei exatos 11 dias para ler Serena, o que para mim é quase um recorde. Em férias, leio bem mais rapidamente. Mas no dia-a-dia, com as obrigações, as coisas cotidianos, sou, ao contrário de Serena, lerdo, lento, lentíssimo para ler, e durante vários destes 11 dias não peguei o livro.
Outro recorde: não me lembro de outra vez em que consegui fazer uma anotação sobre um livro no mesmo dia em que terminei de lê-lo. Terminei de ler Serena no final da tarde. Fiquei umas boas duas horas apatetado, zonzo, sonso, em beatífico estado de choque, e depois, finalmente, corri pras teclinhas, para avançar no texto que havia iniciado numa madrugada destas.
Vixe santa.
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Para mim, o mais absolutamente impactante deste romance extraordinário é a comprovação da ação dos serviços secretos ingleses, a extensão da influência deles sobre as artes, a cultura. Ian McEwan comprova muito do que a gente acabou achando que era apenas teoria conspiratória da história. O ouro de Moscou existiu, sim – mas existiu também o ouro de Londres, o ouro de Washington.
E então a gente fica pensando: será que meus ídolos foram pagos com o ouro de Moscou? Será que Dashiell Hammett recebeu algum? Lillian Hellman? Mary McCarthy, não – ela rompeu cedo com o stalinismo, e por isso comprou uma briga eterna contra Lillian Hellman.
Mas, se houve ouro de Londres para Orwell, para Koestler, teria havido ouro de Moscou para Dashiell Hammett, Lillian Hellman? Arthur Miller, Leonard Bernstein, Clifford Odets? Graciliano Ramos, Jorge Amado? Jules Dassin, Philip Yordan, Zero Mostel, Edward Dmytryk, e vários outros que entraram na lista negra do macarthismo?
Teriam Dashiell e Lillian – um dos casais que passei toda a minha vida admirando (na foto) – tomado porres com o ouro de Moscou, como Serena e Tom Healy bebiam vinho e comiam ostras com o ouro de Londres?
Seríamos Mary, Regina, eu, meus amigos, minhas namoradas, os únicos que tivemos atitudes e escrevemos textos porque acreditávamos no que éramos, no que dizíamos?
Os direitistas de verdade devem odiar McEwan por expor tudo isso. Os esquerdistas, também.
Eu, tentando entender o mundo aqui no meu cantinho, fico achando que estou certo ao concluir, depois de velho, que as ideologias totalitárias, de direita ou de esquerda, são igualmente perniciosas a nós, os seres humanos.
11 de março de 2013
Bom o texto Sergio, bastante elucidativo.
“Éramos todos anti-americanistas, e simpatizávamos com a União Soviética, os países comunistas do Leste Europeu e, claro, com Cuba.Éramos todos de esquerda – alguns mais festivos que os outros. Assim como todos os nossos ídolos.”
Depois de 22 anos de regime autoritário, agora uma porrada de gente assume ter “lutado” ferozmente contra o regime militar e ter “raízes” comunistas.
Os socialistas e anarquistas continuam acreditando na derrocada do capitalismo que esmagou nossa cultura devidamente colonizada.
No Rio os bailes “funk” foram proibidos. A mídia silencia, de onde vem o ouro que paga a mídia? De Moscou não é, de Cuba muito menos, continua vindo da Inglaterra, dos EUA?
Literatura de Ian McEwan? Blogueira Yoani? Guerra quente cultural, de onde vem o ouro?
Valei-me Renato Russo!
Vou dormir dormir!
Epa! Eu jamais disse que “lutei” ferozmente contra o regime militar!
Sérgio
Ora aí está finalmente o Sr. Miltinho a fazer o que devia já ter feito há muito: Dormir!