Quem frequenta salas de cinema é suspeito. Exige-se-lhe que responda, com cara de Buster Keaton, a este questionário slapstick à la Proust iniciado a semana passada. Continue lendo “Filmes, marmelada e um funeral”
Somos todos arguidos
Mas quem é que não vai ao cinema para matar ou morrer? No cinema abraça-se, beija-se, acaricia-se, come-se. Come-se tudo. O cinema é a cama de toda a virgindade: ali se perde, ali se volta a ganhá-la. Continue lendo “Somos todos arguidos”
A mulher imperseguível
Não sei o que pensava Camões, mas eu estou farto de mudança: invoco um tempo definitivo. Não quero que nada mude. Num filme, Baisers Volés, de Truffaut, havia um detective que anunciava esse tempo sempre igual, perene. Continue lendo “A mulher imperseguível”
Os benefícios da calacice
Já houve um mundo perfeito, um tempo em que a palavra “senhor” não saíra ainda do dicionário. E era impossível, na Cinemateca de João Bénard, pensarmos neles sem lhes juntar a então respeitável qualificação: o senhor Alberto e o senhor Gil. Eram mais unha com carne do que Jack Lemmon e Walter Matthau. Lemmon e Matthau dançaram juntos a rumba, foram jornalistas siameses em The Front Page, mas “buddy, buddy” foram, nas suas excelsas vidas, o senhor Alberto e o senhor Gil. Continue lendo “Os benefícios da calacice”
Vi-lhes a alma
Não podemos ser todos Sócrates, pensou David E. Kelley, o produtor de Big Little Lies, pequena mini-série ovo, com clara televisiva e gema cinematográfica protegidas por robusta casquinha social. Não vi melhor este ano. Continue lendo “Vi-lhes a alma”
Quem dá o que tem no bolso…
Ela tira os óculos, que não por acaso lhe ficam bem, solta o cabelo apanhado, vira-se em valsa lenta, boca semiaberta, num sorriso que a ponta da língua interrompe tocando no canto direito do lábio superior. Distraído a abrir uma garrafa de “pretty good rye”, Bogart, que já estava a fazer conversa com ela há dez minutos, levanta a cabeça e, como se acabasse de ver nascer Vénus, solta o mais vivaldiano “hello” da história do cinema. Continue lendo “Quem dá o que tem no bolso…”
Bamboleiem-se
Não acreditem em mim, mas afianço-vos que o email foi inventado em 1913. Tinha a forma de memorando interno e a Universal Pictures fazia com eles um verdadeiro fogo de barragem entre os escritórios de Nova Iorque e Los Angeles. Continue lendo “Bamboleiem-se”
Ninguém manda nela
A última vaga reaccionária que anda a ver se acerta caneladas na liberdade artística chama-se “apropriação cultural”. Para os seus sicários, certos temas só podem ser tratados por artistas que deles tenham vivência identitária. Só cantaria o fado uma lisboeta branca, só pintaria os deuses indianos um pintor hindu, só um artista negro americano choraria o assassínio criminoso de outro negro por polícias brancos no Minnesota. Continue lendo “Ninguém manda nela”
O indissolúvel ménage à trois
Imaginem que Clark Gable, com cósmica bebedeira, espetava o carro a cem metros de um motel manhoso, na companhia de um irresistível par de pernas e de um ilegítimo palminho de cara. O estúdio dele, a MGM do poderoso Louis B. Mayer, mandava-lhe logo um pronto-socorro, Eddie Mannix. Continue lendo “O indissolúvel ménage à trois”
Para reacender a alma de Santo Agostinho
Parece que foi ele que matou ou mandou matar o Super-Homem. Já estou a falar de Eddie Mannix, que é a mesma coisa que agarrar um gato pelo rabo só para o assanhar. Continue lendo “Para reacender a alma de Santo Agostinho”
Um branco par de cuecas
“O realismo existe. É uma coisa.” É o que Harry Dean Stanton assevera – que é mais do que dizer – em Lucky, o mais belo filme do ano, garantem os meus olhos, coração e alma, se o velho Harry Dean não me convencesse de que a alma, ao contrário do realismo, não é uma coisa, logo não existe. Qual escola de Frankfurt, qual caneco, se posso também eu asseverar, este filme existe e é uma coisa. Continue lendo “Um branco par de cuecas”
Deambulação maniqueia: o visível e o invisível
Há o visível e há o invisível. Temo que se queixem de algum exagero conceptual nestas crónicas. Ora, eu prefiro ser rude e apontar com o dedo a ser acusado de conluio com qualquer dos falecidos filósofos franceses dos últimos anos. Com um dedo aponto para Greta Garbo, com outro para Marilyn Monroe. Continue lendo “Deambulação maniqueia: o visível e o invisível”
Mas ontem no sofá
A cara era de trombalazanas. Charles Laughton se fosse cão seria um bulldog. Marlon Brando, se quis ser Don Corleone, teve de atafulhar as bochechas com algodão. Laughton tinha as bochechas cheias de Shakespeare e Old Vic. Era, como os actores que se amam a si mesmos, um actor difícil: amador, disse ele, profissionais são as putas. Continue lendo “Mas ontem no sofá”
Um rosto pré-Big-Bang
Olhem para a cara de pedra de Buster Keaton. Pode parecer uma cara irresoluta. Ou de uma inexpressiva perplexidade. Continue lendo “Um rosto pré-Big-Bang”
O obstetra de John Barrymore
O António, digo eu a toda a gente que me quer ouvir,
é o meu obstetra. Conhecemo-nos, não no consultório, mas nas salas de cinema de Tróia. Digo eu para facilitar. Estavam connosco a Antónia, minha mulher, de quem, por acaso, o António não é obstetra, que já bem basta que seja o meu. Continue lendo “O obstetra de John Barrymore”