O obstetra de John Barrymore

O António, digo eu a toda a gente que me quer ouvir,
é o meu obstetra. Conhecemo-nos, não no consultório, mas nas salas de cinema de Tróia. Digo eu para facilitar. Estavam connosco a Antónia, minha mulher, de quem, por acaso, o António não é obstetra, que já bem basta que seja o meu.

E estavam o Pedro Bandeira Freire, o Pedro dos nossos corações, o Dinis Machado e a Dulce Cabrita, o José Navarro e o António Mendes Lopes, o Alfacinha, e bissextamente o Fernando Lopes, o Fernando Matos Silva, o Manuel Costa Silva, o José Cardoso Pires, a Teresa Maia Carmo, para não falar do António Escudeiro, dos jantares em Lisboa.
Mas o que eu quero dizer é que o António, cinéfilo, realizador dos primeiros video-clips (a começar nos do Sétima Legião), se tornou
num dos tipos mais competentes do mundo – eu sublinho, do mundo – na sua área clínica. E continua a ser meu amigo. De mim, que nem do meu bairro sou o melhor. Há coisas de que nos orgulhamos. Eu tenho orgulho no meu obstetra.

 

O obstetra de John Barrymore
Ao António Setúbal, “meu obstetra”

John Barrymore tinha três dons. Estava para Hollywood como a Rainha Isabel para a Inglaterra, adivinhava o futuro e sabia chorar. Era casado com a bela actriz Dolores Costello e ela engravidou. John já tinha uma filha, mas o seu sonho real era ter um filho varão. Eléctrico, mudava todos os dias de obstetra: queria o melhor para Dolores. E o melhor era o Professor Vruwink. Obrigou-o a visitar diariamente a mulher, apesar dos mil “não é preciso!” do médico.

Um dia chega a casa e vê-os a conversar descontraídos na sala. À saída, Vruwink diz-lhe: “Vê como está tudo bem!” “Está tudo bem de mais, meu filho da puta, não te quero voltar a ver aqui”, responde John, para espanto do médico. Entra e diz a Dolores: “Vais mudar de médico. Este tipo está apaixonado por ti e não admito que te volte a ver e a tocar.” Nos protestos e gritos de Dolores, “faltam sete semanas para o bebé nascer, não mudo de médico”, havia uma ligeira inflexão como numa peça de Marivaux, que logo o ouvido de John mordeu: “Não acredito, tu também estás apaixonada por ele.” Choveram paus e pedras, mas Dolores manteve o médico. Teve uma filha. Um ano depois, o casamento num inferno e Vruwink de novo como obstetra, tiveram um filho, para gáudio de John. A seguir, divorciaram-se. Tinta ainda fresca nos papéis do divórcio e não é que, para espanto de Hollywood, Dolores se casa com o Professor Vruwink?!

Garson Kanin convidou John a protagonizar The Great Man Votes. Fazia um alcoólico em risco de perder a custódia dos filhos. No final, John declamava um poema patriótico. A cena ficou óptima, mas John lembrou-se: “E se eu chorasse?” Kanin não queria, mas John insistiu e chorou. Um dilúvio. “Vamos repetir – disse John – isto é de mais.” A seguir, chorou uma lágrima pequenina, ligeira pausa e depois uma grossa. Virou-se para Kanin: “Posso fazer ao contrário, mas tem de fazer o travelling mais devagar.” Repetiram. Saiu primeiro a lágrima grossa e, gigantesco grande plano, a lenta lágrima pequenina e patriótica. Aplausos delirantes de todos, e logo John: “Isto não é talento de actor. É um truque. Como corar – e corou – ou mexer as orelhas – e mexeu as orelhas – mas em França há um tipo que toca a Marselhesa só com traques longos e puns breves. Isso já não consigo fazer.”

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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