Ninguém manda nela

A última vaga reaccionária que anda a ver se acerta caneladas na liberdade artística chama-se “apropriação cultural”. Para os seus sicários, certos temas só podem ser tratados por artistas que deles tenham vivência identitária. Só cantaria o fado uma lisboeta branca, só pintaria os deuses indianos um pintor hindu, só um artista negro americano choraria o assassínio criminoso de outro negro por polícias brancos no Minnesota.

Sair desses parâmetros identitários seria extorquir um bem à comunidade proprietária. Cada cultura seria uma fronteira rigorosamente vigiada: quem está do lado de fora cala o bico por mais artístico que seja o bico.

Escuso de dizer que abomino essa reformulação ressabiada da luta de classes. Se o mundo é alguma coisa, é mulato. Aprendi a ler na Missão de São Paulo, escola dos Capuchinhos italianos, onde fui um grão de pálido sal ao lado de centenas de miúdos da cor morena dos grãos de robusta, o bom café de Angola, abençoada fusão de identidades que, no cinema rudimentar desses padres, me fez ver, com cheiro de África, westerns e filmes de espadachins.

Não sei se Elias dia Kimuezo, esplêndido cantor de “Ressurreição”, algum dia cantou o fado, mas sei que Keith Jarrett, deus do jazz, se deliciou a interpretar o imaculado Bach, e aos Rolling Stones aqueceu-os o calor sufocado dos blues negros americanos. Nova lei de Lavoisier: só se cria do que se transforma.

Um assistente de Billy Wilder, que tinha, disse o cineasta, tanto de competência como de estupidez virou-se para o mestre, em pleno oceano, espantando-se: “Caramba, nunca imaginei que houvesse tanta água no mundo!” Wilder encolheu-se num “É assim”, e o assistente logo se esticou, elaborando: “E só estamos a ver a que está à superfície.”

Os próceres da apropriação cultural querem isolar a água à superfície e mandar nela. Num gesto retrógrado – o nazismo e o comunismo, esses meios-irmãos desavindos, também o tentaram – subvalorizam a liberdade artística, obrigando-a à vassalagem a interesses políticos, éticos ou identitários.

Todas as culturas trocam fluidos, if you know what I mean: veja-se a pintura de Gauguin, ouça-se Charlie Parker a fundir Stravinsky na sua música. A arte não aceita cabrestos: é blasfema, desrespeitosa, malcriada e unilateral. Como boa arte mulata, ninguém manda nela.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Na foto, Carmen Jones: all-black musical film. Adaptado da ópera do francês Bizet, realizado pelo austríaco Preminger. Com a maravilhosamente mulata Dorothy Dandridge e o cheio de charme jamaicano Harry Belafonte.

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