Os benefícios da calacice

Já houve um mundo perfeito, um tempo em que a palavra “senhor” não saíra ainda do dicionário. E era impossível, na Cinemateca de João Bénard, pensarmos neles sem lhes juntar a então respeitável qualificação: o senhor Alberto e o senhor Gil. Eram mais unha com carne do que Jack Lemmon e Walter Matthau. Lemmon e Matthau dançaram juntos a rumba, foram jornalistas siameses em The Front Page, mas “buddy, buddy” foram, nas suas excelsas vidas, o senhor Alberto e o senhor Gil.

O senhor Gil era o lisboeta genuíno, vindo da escola da função pública da outra senhora, ardiloso, nervo capaz de inventar uma finta em menos relva do que o estonteante Garrincha. O João Bénard herdou-o como motorista. Para a eternidade.

O senhor Alberto tinha vindo de Angola. Descendente da realeza de Cabinda que assinou com Portugal o incumprido tratado de Simulambuco, expressava-se num fino português de Garrett, com toques de Luandino, e era a calma de Deus descida à terra.

O senhor Gil era motorista, o senhor Alberto, responsável pela manutenção do palacete e da sala de cinema. Evocá-los é evocar a nostalgia de um admirável velho mundo, uma nostalgia de How Green Was My Valley, se bem se lembram. O senhor Gil e o senhor Alberto amavam-se porque partilhavam a mesma forma hábil e desprendida, activa e preguiçosa, de resolver problemas e viver a vida. Faziam tudo o que era preciso fazer, mas mal podiam, não faziam nada, o que gozavam, sem culpas ou hesitação.

Um ocioso parêntesis para lembrar a pureza em forma de telefonista, a dona Rita, gordinha e angolana também, que nos tratava por meu anjo, às vezes um “ó filhinho”, minha flor – assédio de que os descendentes dela terão um dia de pedir desculpa. A quem telefonava respondia, “Telefona mais tarde. Esses meninos são vadios, nunca estão no lugar”, para depois nos dizer: “Filhinho, já te salvei de um que te queria chatear.”

E volto a Lemmon e a Matthau, ou seja ao senhor Alberto e ao senhor Gil. Se João Bénard foi o Billy Wilder dessa risonha Cinemateca, também a eles o deve. O amor que os dois tinham à casa e ao João era um amor lânguido, em que a dedicação não excluía o deleite de uma certa calacice, mândria ou fleuma. Eram “senhores”, sublimes sobreviventes de um mundo pré-competitivo, que não mais voltará. Eram o cinema transformado em vida.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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