Livrar o Brasil de Bolsonaro (22)

Os quase quatro anos do desgoverno Jair Bolsonaro foram de destruição. Bolsonaro é como Átila, o Flagelo de Deus. Como os quatro cavaleiros do Apocalipse. Por onde passa, não deixa nada de pé, nem sequer grama.

O desgoverno Bolsonaro quase conseguiu destruir o Sistema Nacional de Imunizações. Fez todo o possível para destruir as ações positivas dos Ministérios da Saúde e da Educação. Arrasou com as medidas de apoio à cultura, à ciência e à tecnologia. Acabou com todo o arcabouço federal em defesa do meio ambiente – não apenas da Amazônia – e das comunidades indígenas. Jogou fora o conjunto de instrumentos que permitiam o combate à corrupção.

Na área da assistência social às famílias mais pobres, é um tudo um absoluto descalabro. O desgoverno atual deixou de lado o que havia de positivo no programa Bolsa Família para implantar o seu próprio Auxílio Brasil – e criou um monstrengo sem qualquer planejamento sério, que, só para dar um exemplo, entrega o mesmo valor a uma família de três e a uma família de oito pessoas. Sem contar com os milhares e milhares de casos já denunciados de entrega do auxílio a pessoas que definitivamente não precisam, entre aliados e apaniguados.

O alastramento da miséria e da fome país afora tem bons exemplos nas manchetes do Globo da quarta-feira, 14/9, e de O Estado de S. Paulo desta sexta, 16/9.

A destruição é em todas as áreas.

Em dois editoriais nos dias 15 e 16/9, O Estado de S. Paulo expôs parte da ação destruidora do desgoverno na área da saúde. “O corte de recursos do Farmácia Popular no Orçamento de 2023 é terrível, mas não surpreende, ante o histórico de desprezo de Jair Bolsonaro pela saúde dos mais necessitados”, escreveu o jornal na quinta-feira. E, na sexta, complementou: “O corte drástico do Programa Farmácia Popular, antes de ser um ‘desencaixe’ acidental da democracia, na definição de Paulo Guedes, expressa a essência do governo bolsonarista.”

Na mesma quinta-feira, 15/9, artigo do ex-embaixador em Washington e presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, Sergio Amaral, mostra, como já indica o título, “A demolição da política externa brasileira”.

A demolição, a destruição é em todas as áreas. Os dois editoriais e o artigo – transcritos na íntegra logo abaixo – fazem um bom resumo do efeito da passagem do Flagelo de Deus pela Presidência nessas duas áreas importantíssimas, a saúde e as relações do Brasil com o mundo.

***

Tesourada na saúde popular

Corte de recursos do Farmácia Popular no Orçamento de 2023 é terrível, mas não surpreende, ante o histórico de desprezo de Jair Bolsonaro pela saúde dos mais necessitados

Editorial, O Estado de S.Paulo, 15/9/2022

Em mais um golpe contra a saúde dos brasileiros, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cortar cerca de 60% da verba do Programa Farmácia Popular, destinado à distribuição de remédios gratuitos ou parcialmente financiados pelo governo, além de fraldas geriátricas. Fixado inicialmente em R$ 2,04 bilhões, o gasto previsto para esse programa foi reduzido na proposta orçamentária de 2023, enviada ao Congresso no fim de agosto. Com isso, dificulta-se o acesso a medicamentos para hipertensão, diabetes e asma, entre outras doenças, enquanto se preservam os muitos bilhões do orçamento secreto, mantido graças ao entendimento entre o chefe de governo e seus apoiadores do Centrão. Todos os produtos da Farmácia Popular servem para o tratamento de problemas muito disseminados.

 

Se o corte de recursos for mantido, ficará ameaçada até a sobrevivência da Farmácia Popular, advertiram técnicos do governo citados pelo Estadão. A ação do governo como grande comprador facilitou, lembraram essas fontes, o barateamento de produtos muito importantes para a saúde de milhões de pessoas. Será importante considerar também esse detalhe durante a tramitação da proposta orçamentária – se houver, é claro, um número razoável de parlamentares interessados em discutir questões tão importantes para a população. Esse tipo de preocupação tem sido raramente notado durante a tramitação de projetos orçamentários.

Sem o apoio do programa, pessoas dependentes dessa distribuição acabarão recorrendo ao Sistema Único de Saúde (SUS), em busca de medicamentos de uso continuado e, portanto, essenciais para a manutenção de condições mínimas de segurança. O risco dessa migração foi apontado por Telma Salles, presidente da PróGenéricos, associação de laboratórios do setor. Se isso ocorrer, uma grande pressão será deslocada para um serviço público já comprometido com uma tarefa complexa, custosa e de grande alcance social.

Embora terrível, a nova exibição de desprezo à saúde pública pelo presidente Jair Bolsonaro nada tem de surpreendente. Ao contrário, é perfeitamente compatível com seu currículo. Há poucos dias, o presidente encenou uma autocrítica ao lembrar sua reação a uma pergunta sobre a mortandade durante a pandemia. “Não sou coveiro”, foi sua resposta, naquele momento. Com enorme atraso e, além disso, a poucas semanas da eleição, ele ensaiou um lamento: “Eu dei uma aloprada, sim. Eu aloprei e perdi a linha”, disse o presidente numa conversa com influenciadores evangélicos.

Há uma escandalosa desproporção entre essa aparente autocrítica e o drama dos brasileiros na pior fase da pandemia. Não houve uma “aloprada” passageira e contida nos limites de uma entrevista, num dia qualquer de 2020. Houve, sim, um desastre ocasionado pela maior crise sanitária em cerca de um século, num país sujeito a um chefe de governo indiferente ao sofrimento e às mortes. Houve a atuação devastadora de um Ministério da Saúde conduzido de forma incompetente, irresponsável e devastadora. Houve um presidente empenhado em recomendar terapias ineficazes, em propagar informações falsas, em combater as ações mais prudentes de governadores e prefeitos e em retardar e dificultar a vacinação.

Não adianta esse presidente dizer-se arrependido de algumas palavras infelizes, quando ele continua, em arranjos com o Centrão, agindo contra o bem-estar e o desenvolvimento. Nem os gastos com educação infantil e construção de creches foram sustentados em seu mandato. Quem poderá acreditar em seu lamento, quase no fim da campanha eleitoral, quando todos devem lembrar-se de sua mensagem mentirosa sobre vacina anti-covid e HIV?

A proposta de Orçamento para 2023, com a tesourada na verba da Farmácia Popular, é mais uma confirmação, em nada surpreendente, do padrão bolsonariano de uso do poder. Quase quatro anos depois de assumir a Presidência, Bolsonaro reafirma dia a dia sua preferência pelos piores e seu desprezo à boa gestão, à prosperidade sustentável e, é claro, a valores como educação, cultura, ciência e saúde pública.

***

O darwinismo social de Bolsonaro

O corte drástico do Programa Farmácia Popular, antes de ser um ‘desencaixe’ acidental da democracia, na definição de Paulo Guedes, expressa a essência do governo bolsonarista

Editorial, O Estado de S.Paulo, 16/9/2022

O governo Jair Bolsonaro tem facilitado a vida dos candidatos que disputam com ele a Presidência da República. Para conquistar votos, as equipes de campanha não precisam apelar a um marketing agressivo ou às fake news que levaram o presidente ao Palácio do Planalto em 2018. Basta ler a proposta que sua administração elaborou para o Orçamento de 2023. Não há peça que deponha mais contra sua gestão e que exponha o tamanho das contradições de suas promessas eleitoreiras do que o documento formal enviado ao Congresso no fim de agosto. Na proposta, o Executivo já havia sido incapaz de garantir a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, tema central da campanha, e teve que fixá-lo em R$ 400, tudo para garantir a reserva de R$ 19,4 bilhões para o orçamento secreto. Não foi suficiente. Agora, como o Estadão revelou, o governo achou por bem comprometer o bem-sucedido programa de distribuição de medicamentos Farmácia Popular e cortar 60% de sua verba.

Diante da péssima repercussão que a notícia teve, o governo apelou à repisada estratégia de buscar outro culpado – qualquer um – para assumir a responsabilidade pela tesourada no programa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, elencou o rol de inimigos que costuma mencionar nesses momentos em que precisa justificar o injustificável, como o teto de gastos – que, curiosamente, funciona para toda e qualquer política pública, menos para conter o avanço das emendas de relator. Sem citar o Centrão, grupo formado pelos verdadeiros donos das emendas de relator, o ministro foi audacioso: culpou até a democracia e prometeu recompor os recursos do Farmácia Popular por meio de uma mensagem presidencial a ser enviada, convenientemente, um dia depois da eleição. “Essa mensagem presidencial vai corrigir esses desencaixes que a democracia às vezes acidentalmente permite”, disse.

Não é a primeira vez que Guedes expõe uma concepção distorcida sobre o regime democrático. Isto posto, o corte do Programa Farmácia Popular, sob vários aspectos, é um episódio revelador. Deixa claro que, para o ministro da Economia, a reeleição de Bolsonaro precisa ser garantida custe o que custar. Do contrário, ele não teria considerado razoável priorizar a distribuição de verbas paroquiais bilionárias a aliados em detrimento de uma política pública que garanta acesso gratuito a medicamentos contra doenças crônicas como hipertensão, asma e diabetes, cujo tratamento tem caráter preventivo e não pode ser interrompido. Afinal, a ideia de reduzir linearmente as despesas discricionárias da Saúde em 60%, de forma a preservar as emendas de relator, partiu do próprio Ministério da Economia.

Como mostrou o Estadão, os técnicos do Ministério da Saúde alertaram a equipe de Guedes de que a redução dos recursos do Farmácia Popular de R$ 2,04 bilhões para R$ 804 milhões tornaria o programa inviável no ano que vem. Como alternativa, eles defenderam, sem sucesso, um corte nas rubricas de atenção primária e de média e alta complexidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Se Guedes apelou para o contorcionismo argumentativo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, recorreu à mentira. Para blindar Bolsonaro, ele disse que o orçamento secreto tinha execução obrigatória, quando até as pedras sabem que esse tipo de emenda parlamentar não é impositiva e poderia ser cortada pelo governo. Com a mesma desfaçatez de quem anuiu com a redução de 60% das verbas do Farmácia Popular, Queiroga prometeu não só revê-lo, como ampliar os recursos destinados ao programa. Nada disso está no Orçamento de 2023 enviado pelo governo ao Congresso.

Nisso tudo, o que chama a atenção é o silêncio de Bolsonaro. Pudera: não há o que dizer ante o fato incontestável de que o corte do Farmácia Popular, antes de ser um “desencaixe” acidental da democracia, na inacreditável definição de Paulo Guedes, expressa a essência do governo bolsonarista. A pouco mais de duas semanas das eleições, Bolsonaro está colhendo os frutos que plantou durante três anos e meio de ergofobia crônica e de orgulhoso darwinismo social. Só ele e seus ministros não sabiam a relevância que uma boa política pública pode ter no bem-estar da população.

***

A demolição da política externa brasileira

O que o Brasil ganhou com a série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em relação aos mais importantes parceiros do País?

Por Sergio Amaral, O Estado de S.Paulo, 15/9/2022

O Itamaraty é uma das instituições mais respeitadas do serviço público brasileiro. Seus funcionários são, via de regra, competentes. O concurso de ingresso é rigoroso, a formação e o aperfeiçoamento dos diplomatas estendem-se ao longo de toda uma carreira. Seu compromisso com o País é inquestionável.

Não obstante, a política externa foi um dos desastres do governo de Jair Bolsonaro. De início, o presidente seguiu, em suas linhas básicas, a política externa de Donald Trump, que isolou os Estados Unidos do mundo e fez adversários em todas as partes, inclusive na Europa, onde os Estados Unidos sempre mantiveram alianças estreitas e amigos fiéis. Combateu a ordem mundial concebida e implantada por iniciativa dos Estados Unidos nas conferências de São Francisco e de Bretton Woods, logo após o término da Segunda Guerra Mundial.

As confusas e obscuras visões de mundo de Ernesto Araújo, o primeiro chanceler de Bolsonaro, inspiraram-se nas exóticas teses de Steve Bannon, o influente guru e “estrategista” de Trump, que chegou a criar um “movimento” nacional populista na Europa, com sede no mosteiro medieval de Trisulti, na Itália. Seu objetivo era o de abrigar uma escola para a formação dos cruzados do século 21. Ali eles seriam adestrados para defender os valores da cultura judaico-cristã contra as ameaças dos infiéis e do materialismo ateu. Os alunos do Instituto Rio Branco foram convocados para assistir a palestras nas quais ouviram, perplexos, uma doutrinação em defesa dos valores do cristianismo medieval. Não chegaram a realizar o seu treinamento em Trisulti, mas no auditório do Instituto Rio Branco, em Brasília.

Influenciado por essas visões insólitas, também compartilhadas por membros do gabinete da Presidência da República, o governo Bolsonaro iniciou uma meticulosa demolição de algumas de nossas mais respeitadas tradições diplomáticas. O alvo privilegiado, como também o era para Trump, foi a ONU, particularmente o Conselho dos Direitos Humanos e a Organização Mundial da Saúde. O multilateralismo passou, então, a ser considerado uma ameaça aos interesses brasileiros.

Na mesma linha, o Mercosul, que já foi um dos pilares de nossa diplomacia, sob Bolsonaro foi condenado ao descaso. Foi acusado por não ter alcançado a união aduaneira, nem mesmo o livre-comércio, o que é em parte verdade, sem lembrar que muitos dos que faziam a crítica são os mesmos que se haviam oposto a uma desgravação mais ampla. E não reconhecem tampouco a contribuição valiosa da harmonização do marco regulatório, nos mais diferentes setores, para a circulação mais desimpedida dos bens e capitais, ciência e tecnologia, transporte e serviços de infraestrutura, cultura e turismo, entre outros.

Nessas condições, o Mercosul ficou praticamente restrito a uma discussão ociosa entre Brasil e Argentina sobre o grau de redução da Tarifa Externa Comum, como se dois ou três pontos porcentuais, para cima ou para baixo, pudessem fazer a diferença para atingir um patamar mais elevado de integração entre os membros do acordo regional.

Enquanto isso, as reais questões sobre a reforma do Mercosul, a dinamização do comércio, a ampliação ou a expansão em direção à Aliança do Pacífico, ou mesmo em direção à Parceria Transpacífica, passaram para o segundo plano, pois não é possível avançar numa agenda regional, complexa e desafiadora sem o engajamento ativo dos chefes de Estado.

Outra iniciativa de que o Brasil havia participado e mesmo liderado, o acordo Mercosul- União Europeia, está paralisada diante das ofensas pessoais de Bolsonaro à esposa do presidente da França, um episódio sem precedentes na história da diplomacia brasileira. A recusa em não ratificar o acordo, da parte de outros países europeus, deveu-se ao descumprimento pelo Brasil de seus compromissos com a redução do desmatamento na Amazônia.[

Por fim, vale relembrar os ruídos, senão hostilidades, em relação aos dois mais importantes parceiros econômicos do Brasil. A China, em razão das hostilidades gratuitas a membros de sua Embaixada em Brasília. Os Estados Unidos, pela embaraçosa, mas deliberada demora no reconhecimento da vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas.

Na iminência de concluir-se o governo do presidente Bolsonaro, resta uma indagação central: o que o Brasil ganhou com esta série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em relação aos mais importantes parceiros do País? Os riscos e custos são conhecidos: o isolamento internacional do Brasil; a perda de sua liderança, inclusive em nossa própria região; e a criação, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de um comitê especial para investigar a progressão do desflorestamento na Amazônia, cujos resultados serão levados em conta na aprovação ou não do pedido de adesão do Brasil ao organismo, por exemplo.

A política externa está entre os setores que o próximo governo, qualquer que seja, terá de mudar substancialmente.

16/9/2022

Este post pertence à série de textos e compilações “Livrar o Brasil de Bolsonaro”.

A série não tem periodicidade fixa.

O presidente da República tem tudo a ver com o assassinato do petista em Foz do Iguaçu. (21)

Se tivessem vergonha na cara, os deputados jogariam no lixo a excrescência que é essa PEC da Reeleição. (20)

Um comentário para “Livrar o Brasil de Bolsonaro (22)”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *