O interfone toca. Aí vem problema

Tenho direito a ficar de mau humor por causa do confinamento, e das notícias que a tevê traz sobre as duas pragas que assolam o País. Mas não imaginava que diante de um fato corriqueiro poderia escorregar para uma… digamos, certa de falta de modos.

O interfone toca. Mal atendo, brota uma voz feminina.  “Bom dia!” E antes que eu devolva o cumprimento: “Sou a Verena, sua vizinha do 355!”. Estava convidando as mulheres aqui de casa para um encontro “tipo terapia de grupo”. Com os devidos cuidados, máscaras e distanciamento, as envolvidas se reuniriam no salão de festas. Cada qual falaria sobre sua vida, problemas com marido, desejos, excesso de peso. “O que você acha?”

Antes que me desse conta, minha boca se abriu e dela saiu isto: “Perfeito como desfastio de donas de casa que não têm mais o que fazer”. Ouvi uma espécie de grunhido, alguma coisa sobre falta de educação, e o clique do interfone desligando.

Mais tarde contei o episódio à minha filha. Tivemos o seguinte diálogo.

– Você acha que fui grosso?

– Grosso? Grosso é tronco de mogno, você foi muito mais do que isso.

– Bom… Então vou mandar o seu nome para ela.

– Está louco?

Mulheres, vá entendê-las.  O fato é que a minha performance correu o prédio. De alguma forma, passei de anônimo para o sujeito de barba branca indigitado nas áreas sociais, vítima de olhares rancorosos no elevador.  Acho que fizeram um retrato falado do mau elemento – a minha pessoa!

Poucos dias depois, toca o interfone. Estava sozinho em casa. Resolvi não atender. Mas… e se for da portaria, alguma entrega? Agarrei o fone. “ALÔ!” Alívio: voz masculina.

– Vizinho? Aqui é o Santiago, do 101. Como está a barra aí?

– Difícil… mas vou levando.

– Falei com o meu pessoal aqui do prédio. Não ligue para aquela bobageira com a vizinha, viu?

– Bem, eu…

– Estou convidando você para uma atividade da Turma do Bolinha, ah, ah, ah. Se quiser, chame de desagravo.  Olha a sacada. Vamos fazer um campeonato de jogo de palitinho!

Como no caso da vizinha, ia abrindo a boca para lançar uma frase – conheço maneira menos estúpida de usar palitinhos – mas me contive. Fui elegante.

– Sabe o que é? Estou com muito trabalho. Uma pesquisa sobre a pesca predatória em Santos…

Ao quase adversário nos palitinhos pode ter ocorrido o seguinte: quanto a mim, prefiro almoçar o produto do crime.

Maio de 2020

Um confinado na cozinha (5)

Anotações de um confinado (4)

 

 

 

5 Comentários para “O interfone toca. Aí vem problema”

  1. Valdir, considero você uma das pessoas mais educadas, gentis, atenciosas, essas coisas todas, com quem cruzei nesta minha já longa vida (que Deus me mantenha por aqui, desde que eu não perca a lucidez e vire um estorvo para a família, amigos, cuidadores – que Deus me livre em especial desses trabalhadores). Então, meu amigo, toque em frente. Se tiver o disco, ouça Tocando em Frente, parceria do Renato Teixeira com o Almir Sater e/ou Amizade Sincera, parceria do Renato com o Dominguinhos. Ficaria honradíssimo se, ao ouvir essa segunda, você me incluísse entre os seus amigos. Um abraço do tamanho de nossas vidas.

  2. Não atenda mais esse interfone, Valdir. Não confio no que você vai falar na próxima vez.

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