Enquanto o trânsito continuar fluindo

Anotações de um confinado

O quarto/ a parede dos fundos/ a janela moldurada por sua esquadria. Adiante, a cena da rua deserta. Começo da madrugada. Não se vê um único carro passar, ou mesmo apontar um farol distante. Isto é absolutamente inédito.

E, no entanto, me enternece. Sempre quis ver o bairro adormecido, as ruas, a fachada das casas, os carros em pernoite no meio-fio, destacados da escuridão pela luz amarelada que vem dos postes. Um lugar em absoluta paz. Mas… lá vem dois faróis acesos pela travessa que me é mais próxima. O intruso surge, atravessa a minha rua, e se vai. Mas isso é tudo. O cenário se recompõe.

Até há pouco, quando a palavra pandemia era novidade, este observador postava-se na janela em busca de desfrutar a paz silenciosa da noite alta. Sabendo, de antemão, que o gesto seria à toa. Podia até acontecer por uns poucos minutos. Mas logo o semáforo de uma avenida distante esverdeava. Os faróis dos carros enfileirados começavam a avançar para esta Vila Augusta, não distante do centro de Guarulhos, cidade onde vivem um milhão e trezentas mil pessoas.

Em pouco tempo uma parte dos invasores estaria violando o meu território, fulminando a paisagem com a luz forte dos seus faróis. Por fim, passavam. Mas, na avenida, o verde do semáforo estaria novamente se acendendo…   Em sã consciência, espero que bem rapidamente esta situação volte a acontecer. Trânsito sim, pandemia não.

O observatório da janela me induz a outra atividade, esta insólita. A de vigilante. Lá adiante, entre prédios, mostra-se um pequeno trecho da Via Dutra. Peguei o hábito de conferir o tráfego incessante de carros e caminhões que passam pela rodovia. Olho, e estão correndo. Fluxo intermitente. Pela Via Dutra passa mais da metade das riquezas do País. Enquanto o trânsito continuar fluindo, me sinto seguro, sinal de que a economia continua ativa.

Nestes últimos dias, tive surpresas. Busco, e a pista está deserta! É assustador. Mas em três, quatro segundos no máximo, os carros, os caminhões aparecem, rápidos, incessantes, como sempre foi. “Tudo bem”, penso, e vou cuidar da vida. Algo como tomar um café, o que já é alguma coisa para um confinado.

Maio de 2020

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