Anotações de um confinado, volume 4

Num gesto impulsivo, resolvi abrir o baú (no comum chamado boxe). Levantei a parte de cima da cama, com o colchão, e surgiram velhos jornais e revistas, com matérias que produzi, ou me dizem respeito. Folheando jornais, dei com uma manchete muito bem sacada.  Madonna se apresentava no Rio, em 2008. Conheceu o modelo brasileiro Jesus Pinto da Luz e caiu de amores por ele.

Manchete do Diário do Comércio: “Ai Jesus!”

Comandado por Moises Rabinovici, o DC trazia reportagens sobre áreas de interesse geral,   como cidade e cultura. Este que vos escreve fazia ali, no pós JT, frilas fixos (como o de Madonna). O autor da manchete sobre a cantora, Carlos de Oliveira, editava, entre tantas,  minhas matérias. Sujeito criativo!

Uma delas foi sobre a Vila Itororó, palacete dos primórdios do século XX, no Bexiga, em avançado processo de ruína. Título: “Vila Itororó pode ir para o beleléu”. Outro texto mostrava um grupo de fanáticos por filmes de bangue-bangue. Tinham sede própria, estouravam pipocas e se vestiam como cowboys para assistir às fitas. Manchete: “Mãos ao alto! E passe logo a pipoca”.

Sem-teto ocuparam o Othon Palace Hotel, na Rua Líbero Badaró. Explico, no texto, que quem vinha da rua tinha que passar pela recepção por razões de controle. Título: “Sem-teto fazem check-in no Othon Palace”. Mas havia momentos solenes. “Municipal completa cem anos de aplausos.”

Carlos começou sua carreira em 1972, na Gazeta Esportiva. Passou entre outros pela Folha, onde foi de repórter a editor da primeira página. No Estadão, editor de Geral e de Domingo. E no Jornal da Tarde, repórter de Esportes. O JT? Não era aquele em que os fechadores das matérias chegavam a gastar tempo infinito na busca do título perfeito?

Como Carlos chegava a títulos tão criativos, no Diário do Comércio? “Não tinha um método. O título brotava ao longo do tempo em que estava lendo a matéria. Vinha um insight… Eu anotava à mão, e continuava a leitura. Depois relia o texto, para ver aquele era mesmo o título.” E era!

Hoje, Carlos está no blog Sonoridades e no blog de Ubiratan Brasil, ambos na área de Cultura do Estadão. Deixou o Diário do Comércio em 2014, devido a um fato que surpreendeu toda a redação. O jornal foi extinto, exatos 94 anos depois de sua fundação (em 1924). Em seu lugar existe uma versão online.

Em fevereiro daquele 2014 fiz, com muito pesar, o texto sobre a morte do Renato Pompeu.  Renato participou da fundação do Jornal da Tarde, esteve entre outros na Folha, na Veja, ganhou Prêmio Esso, escreveu mais de 20 livros. Dono de grande erudição, era no entanto pessoa afável e espirituosa. Dizia que sonhava em dar este despropositado título para uma matéria: “Leia a notícia abaixo”. Para homenageá-lo, Rabinovici tascou, no alto da página com a matéria do falecimento: LEIA A NOTÍCIA ABAIXO.

Abril de 2020

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5 Comentários para “Anotações de um confinado, volume 4”

  1. Adorei o texto. Carlos de Oliveira não é apenas um editor criativo, mas uma pessoa maravilhosa, gentil e de coração bom.

    Parabéns!

  2. Uma reclamação: o meu único gesto impulsivo permitido é atacar as pilhas de louças e de roupas que eu preciso lavar diariamente nesta prisão domiciliar. Também sou ajudante de cozinha e faço compras pelos aplicativos dos supermercados, para entrega em casa. A turma da tornozeleira eletrônica está se sentindo vingada vendo o Brasil inteiro trancafiado. Mas, como você pertence à elite privilegiada que encontra tempo para abrir o baú, continue nos presenteando com esses “causos” deliciosos, Valdir.

  3. Luiz Carlos, abro o baú depois de descansar, na cama, da mesma trabalheira que você se queixa, lavar louça. É a sina dos confinados! Já que você sugeriu, vou dar mais uma olhada nos escondidos do baú. Tem umas coisinhas de um tempinho atrás, como matérias de viagens feitas nos anos de 1970, 1980. As viagens foram boas, o duro foi levar a máquina de escrever.

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