Nara. Antenas de sensibilidade, nenhum preconceito

Nara Leão uma vez se comparou a Lech Walesa. Citou uma frase dele – “Os intelectuais às vezes levam dez dias discutindo, para chegar a uma conclusão à qual eu já cheguei faz tempo, eu, que nunca li um livro” – para dizer, em uma entrevista a este repórter, em 1981: “Eu tenho essa coisa assim de sacar rápido. É como se eu tivesse uma antena. Faz com que eu não fique atrasada, retardada. E acho que isso é que é o artista, não é? A pessoa que tem a sensibilidade de detectar certas coisas que são da sua época, ou que estão um pouco adiante da sua época e as outras pessoas não estão percebendo ainda”.

O folclore mal aprendido vai dizer sempre que Nara é a musa da bossa nova, a cantora de voz pequena, os joelhos que cantam. Paciência.

Mas a verdade é que Nara Leão representa, talvez mais do que ninguém, na música brasileira, as antenas da sensibilidade, que fazem remar contra a corrente dos modismos, ir sempre à frente deles, com a garantia de uma total ausência de vetos, de preconceitos.

É só lembrar. Nara chegou ao seu primeiro LP já com a fama de musa da bossa nova – porque fazia parte da turma original do movimento, e em torno dela se aglutinavam muitos dos compositores que faziam parte dele. Mas, já nesse primeiro LP – Nara, 1964, gravadora Elenco –, ela ousava avançar contra a maré, com músicas de compositores do morro, como Cartola e Nelson Cavaquinho; eles foram praticamente redescobertos por Nara, ao serem lançados para a Zona Sul do Rio e daí para os discos e o país.

Foi a primeira cantora famosa a gravar as músicas de um garoto que em 1966 parecia promissor, Chico Buarque de Hollanda. Lançou, em várias gravações, o até hoje não justamente reconhecido talento do jovem Sidney Miller. Foi dos primeiros a gravar Edu Lobo, Paulinho da Viola, Gilberto Gil. Mais do que musa da bossa, foi, em 1964 e 1965, a voz das músicas “sociais”, de “denúncia” ou “protesto”, com os shows Opinião e Liberdade, Liberdade – mas, em 1967 e 1968, quando Elis Regina falava mal de quem gravasse com guitarra elétrica, Nara estava do lado da revolução da tropicália (Caetano segura sua foto na capa do disco-manifesto de 1968).

Ainda era 1969 – sete anos antes do show Falso Brilhante, e muitíssimo antes que qualquer música latino-americana fizesse sucesso entre o público de MPB – quando gravou uma canção chilena, de Rolando Alarcón.

Gravou o francês Georges Moustaki, o português José Afonso e o cubano Silvio Rodriguez quando ninguém sabia quem eram eles (alguém hoje sabe, além de um punhado restrito de pessoas de bom gosto?,) com as mesmas antenas sensíveis que a fizeram retirar do baú pérolas de Assis Valente, Custódio Mesquita, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Noca da Portela.

Com a mesma inteligência com que escolheu para acompanhar sua voz instrumentistas como Antônio Adolfo, Robertinho do Recife, Roberto Menescal, Dori Caymmi.

Sem nenhum preconceito contra o velho ou contra o novo. Mantendo, na total diversidade de estilos musicais, apenas o requisito fundamental da qualidade.

Este texto foi publicado no Jornal da Tarde em 8/6/1989, na cobertura da morte de Nara, com o título “Uma Lição: como é bom não ter preconceito”.

Mais Nara Leão neste site: 

* Nara, num momento especial.

Uma reportagem minha, a partir de uma entrevista que tive a sorte de fazer com a cantora, no apartamento em que ela morava em Ipanema, em 1981, na época do lançamento do disco Romance Popular. A reportagem foi publicada no Jornal da Tarde, em 27/6/1981.

* Um grande disco da cantora de sensibilidade rara.

Resenha sobre o disco Romance Popular. Publicada no Jornal da Tarde, em 27/6/1981.

* O belo disco de uma Nara alegre e segura.

Resenha sobre o disco Nasci para Bailar. Publicada no Jornal da Tarde, em 1º/10/1982.

* Nara e Elis

No dia 19 de janeiro de 2012,  fez 30 anos que Elis Regina morreu, e completaram-se 70 anos do nascimento de Nara Leão. Semelhanças e dessemelhanças entre duas grandes cantoras. 

* Nara Tropicália

Texto de Caetano Veloso publicado em O Globo em 22/1/2012.

3 Comentários para “Nara. Antenas de sensibilidade, nenhum preconceito”

  1. Sérgio, meu amigo,

    ao te ler (com atraso, mas que mal faz?), releio a Nara e toda a nossa admiração/paixão por ela, a partir dos anos 60.
    Alguma coisas na vida realmente valeram/valem a pena. “Coisas do mundo”,que a gente precisa aprender.

    Beijo comovido
    Vivina

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