Elis, brilhante. Até no disco que ela não quis

A primeira constatação a se fazer é triste, mas imprescindível: o LP Elis Regina – 13th Montreux Jazz Festival, que a WEA está lançando agora, só chega às lojas porque a cantora maior morreu.

Elis Regina não quis este disco. Assim como não quiseram, ao que consta, os músicos que tocaram com ela naquele julho de 1979, no festival realizado na Suíça, e também a diretoria da gravadora com quem ela assinara o contrato naquele ano, a WEA. Basicamente, porque a qualidade técnica da gravação feita ao vivo não era boa. E Elis, como se sabe, era exigente, cuidadosa, perfeccionista. Renegou, por exemplo, o LP Elis Especial, que a PolyGram lançou em 1979, logo após a cantora trocar a antiga gravadora pela WEA – um LP feito de faixas que ela achara indignas de figurar em seus discos. Poucos meses após as apresentações em Montreux, ela lançaria um disco com as músicas de seu novo espetáculo, Saudade do Brasil – mas, em vez de cômoda e óbvia solução de gravar o show ao vivo, optaria por gravar todas as músicas em estúdio, longe das imperfeições sempre presentes em uma apresentação ao vivo. Respeito pelo público – e respeito ao seu trabalho.

Com a morte de Elis, e a grande procura por seus discos, velhas matrizes foram relançadas, e as poucas gravações inéditas foram vasculhadas nos arquivos das gravadoras. E é por isso que este LP chega agora às lojas.

Se tivesse sido lançado na época, logo depois da gravação, este teria sido o antepenúltimo disco de Elis Regina. Depois dele, viriam apenas Saudade do Brasil, gravado em abril de 1980 na WEA, e Elis, lançado em dezembro de 1980, pela EMI-Odeon. Seu LP anterior havia sido o Elis, essa mulher, lançado pela WEA no início de 1979.

A cantora estava vivendo mais uma fase de transição em sua carreira. Depois de um período em que privilegiava a interpretação arrebatada e arrebatadora (da época do Fino da Bossa até o final da década de 60), Elis havia passado, nos primeiros anos da década de 70, por uma fase em que, ao contrário, dava mais importância à precisão, ao rigor, à técnica, à voz enxuta. A partir do show e do LP Falso Brilhante (1976), soltou novamente as emoções – não como uma volta aos tempos do Fino da Bossa, mas como o resultado do amadurecimento adquirido no início dos anos 70. Esse período de 1976 em diante foi, coincidentemente, aquele em que a cantora mais se preocupou em cantar os problemas e as angústias do seu tempo – um ciclo que, aparentemente, se esgotaria com Saudade do Brasil; a partir daí, ela queria se ver “libertada do sufoco” e cantar “livre, leve e solta”, como definiu na época da gravação de Elis, o que seria seu último disco.

O festival de Montreux veio, assim, quando esse ciclo “político” chegava ao fim. O resultado de sua apresentação na Suíça não é um disco de Elis Regina, que Elis Regina quisesse ver no mercado. Mas também não é – nem de longe – um disco ruim.

A qualidade técnica é inferior à dos outros trabalhos da grande cantora. O repertório é irregular, talvez um pouco para estrangeiro ver. Há momentos (raros) em que a voz de Elis se permite excessos, arroubos, numa exibição de virtuosismo talvez aceitável num palco de festival internacional, mas que ela provavelmente preferiria evitar numa gravação mais cuidada (como, por exemplo, alguns agudos de “Na baixa do sapateiro”). Mas isso são apenas pequenos senões, imperfeições menores. Predominam, e fartamente, as qualidades. Como por exemplo, a competência dos excelentes músicos: César Camargo Mariano está brilhante, especialmente nas faixas em que toca piano acústico; Hélio Delmiro, na guitarra, e Luizão, no baixo, também estão excepcionais; e o conjunto é completado com as corretas participações de Paulinho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão).

Predomina, sobretudo, o genial domínio de voz privilegiada da cantora. É como se Elis quisesse mostrar ali no palco tudo de que era capaz – a divisão diferente, pessoal, e a extensão da voz, em “Na baixa do sapateiro”; o ritmo, a velocidade e a leveza em “Upa neguinho”; a alegria e a malícia em “Cai dentro”; a exuberância e a força empolgantes na faixa que reúne três músicas de Milton Nascimento (“Ponta de areia”, “Fé cega faca amolada”, “Maria, Maria”). Mesmo “Madalena” possivelmente a pior música que Ivan Lins já conseguiu compor, se transforma em um exercício de canto, audível como tal.

E há, ainda, um momento especial – o encontro dos talentos de Elis e Hermeto Paschoal, nas três últimas faixas (as exaustivamente gravadas “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Asa Branca”). Este é um encontro que se pode, com toda a propriedade, chamar de histórico. Não se trata de um músico (no caso de Hermeto, o homem dos mil instrumentos, toca piano) que acompanha uma cantora: são dois grandes instrumentistas criando músicas juntos, cada qual com o mais absoluto domínio de seu instrumento, duelando, se provocando, se completando. O resultado é extasiante.

Talvez só essas três faixas já justificassem o disco.

Não era, certamente, o que a exigente Elis Regina pensaria. Mas a sua arte já não lhe pertence mais.

          Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde em 10/4/1982

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