Quem se atreve a não declarar amor à multidão? Comunistas e fascistas amam a multidão unânime, estrondosa.
A luva branca
Usava luvas. E, filho de mãe de origem francesa, uma desiludida bengala aristocrática. Escrevia tão bem como se vestia. Uma elegância céptica em cada frase. Um elaborado ritmo descritivo que sugere acção e intriga onde acção e intriga quase não existem. É preciso talento. E combinar bem tumultuosos substantivos com discretos adjectivos. Continue lendo “A luva branca”
Três balas e uma laranja
Enterremos hoje os nossos sonhos como ontem Michael Corleone enterrou os dele. Foi no primeiro, o mais perfeito The Godfather. Don Vito Corleone já fora baleado antes. Ouvira-se o barulho seco dos tiros e o Padrinho dançara hesitante, um pé a fugir ao outro, o vulto patriarcal a tombar sobre uma banca da fruta e legumes. Duas, talvez três balas no corpo, e uma laranja a rolar no cansado alcatrão. Continue lendo “Três balas e uma laranja”
Começa sem mim
Nenhuma janela é indiscreta. Há janelas em todos os filmes de Hitchcock, mas foi na janela das traseiras que ele filmou a sua melhor obra. A janela das traseiras dá para as traseiras do mundo e é pelas traseiras que o mundo se deixa filmar. Continue lendo “Começa sem mim”
O fim do mundo
O fim do mundo, sim. O começo do mundo, o big bang ou outra hipótese mais mítica, pouco me interessam. Mesmo a ideia de um paraíso cheio de maçãs, uma nudez sem história nem pecado, e uma serpente a insinuar-se em conversas melosas, não me farão levantar o rabo da cadeira. Continue lendo “O fim do mundo”
O pesadelo de um anjo azul
Judeu de Berlim, a Alemanha era a sua pátria. O teatro, com Max Rheinhardt, e depois os estúdios de cinema da UFA, eram a sua casa. Kurt Gerron, na Guerra e nas Artes, mereceu medalhas. Continue lendo “O pesadelo de um anjo azul”
O chimpanzé da minha rua
Estive na mansão de Hugh Heffner. Em Beverly Hills, colinas e floresta à volta, tocava-se jazz, playmates vestidinhas, sauna escavada na rocha, um jardim zoológico de araras, mirrados macacos, coelhos e suponho que coelhinhas, uns despardalados pink flamingos. Continue lendo “O chimpanzé da minha rua”
Dá-lhe beijos um cão
Dá-lhe beijos um cão e só a esse cão Boudu dá beijos. Como Édipo ou Hamlet, Boudu devia ser já um arquétipo estudado nas escolas. Isto supondo que, continuando a haver escolas, nelas se estude ainda Antígona, as terríveis Erínias, o velho bode dionisíaco. Continue lendo “Dá-lhe beijos um cão”
O mais sonâmbulo dos filmes
Um dia, por falta de comparência do mundo tal como o conhecia, vi, como na estreia de um filme, reinaugurar-se a vida. Continue lendo “O mais sonâmbulo dos filmes”
Nelson Rodrigues
Estivesse vivo, teria feito 100 anos a 23 de Agosto. Ressuscito um texto antigo com um ou outro adjectivo novo. Continue lendo “Nelson Rodrigues”
Quando um homem ama uma mulher
“Tu ama-la?” Vão no carro, Butch ao volante, Buzz enfiado no fato de Casper, o fantasminha feliz. Butch ainda tenta uma digressão distractiva: “Quem?” Mas a curiosidade de Buzz é obstinada e infantil: “A senhora que nos cozinhou os hamburgers…” E como é que se explica a uma criança quando é que um homem ama uma mulher. Continue lendo “Quando um homem ama uma mulher”
Nosso Senhor de Hollywood
Gostos discutem-se. Mesmo que, por serem gostos, quase nunca e quase nada valha a pena discuti-los. Pode ganhar-se um debate, mas nunca se ganha a pessoa com quem se debateu. Continue lendo “Nosso Senhor de Hollywood”
A boca viva e carnuda de Binoche
Há filmes que ainda não existem, mas que se está mesmo a ver que serão filmes um dia. Mais tarde do que cedo, receio. Antecipo um. Continue lendo “A boca viva e carnuda de Binoche”
O chinês solitário
Donde saiu o chinês? Filas deles balançam carris e constroem as grandes linhas férreas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chinês é uma multidão no cinema americano, longa fila apeada que antecede o primeiro comboio. Continue lendo “O chinês solitário”
E um dia comem-nos
Era em Luanda e tinham nos olhos um aborrecimento escandinavo. No meu Liceu, que agora se chama Mutu Ya Kevela, havia jacarés. Nadavam num tanque fundo e tinham uns bons metros de areia para se aquecerem ao céu aberto do pátio. Continue lendo “E um dia comem-nos”