Dá-lhe beijos um cão

Dá-lhe bei­jos um cão e só a esse cão Boudu dá bei­jos. Como Édipo ou Ham­let, Boudu devia ser já um arqué­tipo estu­dado nas esco­las. Isto supondo que, con­ti­nu­ando a haver esco­las, nelas se estude ainda Antí­gona, as ter­rí­veis Erí­nias, o velho bode dionisíaco.

Quando o filme de Renoir começa, Boudu cami­nha ao lado do Sena em pas­sos las­ca­dos, sal­tos de cabra velha, um Baco de bar­bas hir­su­tas e anár­qui­cas. O preto e branco de 1932 sugere que é ruivo o cabelo que, sujo, se desa­li­nha esca­pando ao boné, numa ante­ci­pa­ção de beat­nicks, hip­pies ou rastas.

Boudu vai tal­vez matar-se. É um vaga­bundo. Conhece o pri­vi­lé­gio que mais de 800 mil desem­pre­ga­dos por­tu­gue­ses não têm: o da esco­lha. Esco­lheu a liber­dade de noi­tes debaixo das pon­tes, a embri­a­guez de pere­gri­nar sem nas­cente ou foz. É o seu pri­vi­lé­gio, mas julga ter outro, o de se poder matar. O cão que beijando-o o lam­bia, o único húmido foci­nho a que ele dava bei­jos, fugiu-lhe ou perdeu-o ele na sua labi­rín­tica liber­dade. O des­gosto atira-o ao rio.

Seria a morte de Boudu, se Mon­si­eur Les­tin­gois, tão refi­nado livreiro como voyeur, não esti­vesse, para deses­pero da ciu­menta cri­ada sua amante, a esprei­tar por um óculo as damas das mar­gens do Sena. O livreiro lança-se ao rio e desa­foga o vaga­bundo. “Boudu sauvé des eaux” é tudo menos agra­de­cido. Quando acorda, “Est-ce que je suis mort?”, ainda tem espe­rança de estar no céu. Ao descobrir-se neste mundo e tão enchar­cado, queixa-se de que vai constipar-se. “É culpa sua!” acusa-o, insa­tis­feita, Madame Les­tin­gois, que insa­tis­feita pas­sará quase todo o filme. Mal­cri­ado, mas com lógica, Boudu não se con­tem: “Não. É culpa dele” e aponta o dedo ao salvador.

Les­tin­gois é um refor­mista nato. Olha para Boudu, mag­ní­fico ani­mal, e antevê a obra civi­li­za­dora: trans­for­mar a besta num cava­lheiro. Mas como já fora culpa de Mon­si­eur Les­tin­gois ter Boudu acor­dado enchar­cado, dele será tam­bém a culpa do que fatal­mente vai acontecer.

Boudu tem uma elec­tri­ci­dade neu­ro­ló­gica caó­tica: infer­niza a mesa do jan­tar, des­trói uma cozi­nha, cospe com natu­ra­li­dade nas doces pági­nas da Fisi­o­lo­gia do Casa­mento de Bal­zac e, sau­dade dos bei­jos do cão, tenta bei­jar a boca de Anne-Marie, a amante do seu sal­va­dor. Bei­jará sim, fazendo soar trom­be­tas, a boca de Madame Les­tin­gois, bem pre­ci­sada de uma brisa no decote e duma musi­qui­nha de rea­lejo nos ouvidos.

É tudo para lição e maior gló­ria de Les­tin­gois. No fim, o admi­rá­vel tro­glo­dita que o actor Michel Simon – ele mesmo anar­quista, por­nó­grafo e misan­tropo – criou em Boudu, regres­sará, sem adeus e muito menos agra­de­ci­mento, à sua desa­bri­gada liber­dade. Mon­si­eur Les­tin­gois consola-se a olhar o rio, o cari­nhoso braço direito aper­tando a cri­ada, o esquerdo a terna esposa, um degrau de feli­ci­dade acima no fir­ma­mento balzaquiano.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

Um comentário para “Dá-lhe beijos um cão”

  1. Não percebo nada do que este Sr. escreve, deve ser só para pessoas muitíssimo cultas, inteligentes, etc..
    É o cão Boudu que dá bei­jos, as ter­rí­veis Erí­nias, um tal Mon­si­eur Les­tin­gois e por aí fora.
    E os leitores do Expresso pagam e não é pouco para ler estas preciosidades!

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