Saibam todos que Nara Leão canta bem.
Quem proclama isso, com a segurança tranqüila de quem sabe muito bem o que está proclamando, é Nara Leão.
De início, ela é até um pouco cautelosa. Depois se inflama com a certeza do que está dizendo:
– Hoje em dia eu já acho até que canto bem. Já parei de achar esse papo de que “ah, ela não tem muita voz, ela não tem uma extensão de voz”. Tenho, sim. Sou afinada, sim. Canto bem, sim.
Uma pequena pausa, e ela volta ao tema, absolutamente segura:
– Depois de cantar tantos anos, eu resolvi, agora, encarar esse negócio. Resolvi entrar pra turma do narcisismo. Eu já estou cansada de ouvir as pessoas dizerem que “não, ela tem repertório, ela é inteligente – mas ela não tem voz”. Eu desconfio que, para os críticos, as pessoas não podem ter dois atributos. Não se reconhecem dois atributos na mesma pessoa. A Tônia Carrero, por exemplo. A Tônia Carrero passou a vida inteira sendo chamada de mulher bonita e de péssima atriz. Parecia que ser bonita e ser boa atriz eram coisas incomparáveis. Só agora é que as pessoas estão vendo que ela é uma excelente atriz. Ser cantora e pensar na vida, e ser inteligente, também são coisas incompatíveis, me parece, para os críticos. O que se diz é o seguinte: “A maioria das cantoras não pensa, a Nara é a que pensa”. Mas por que uma pessoa não pode cantar bem e pensar? Eu acho que eu canto bem – e penso. Então o fato de eu ser uma pessoa que pensa, que tem opiniões, que lê jornal, que sabe um pouco o que se passa no mundo me impede de ser uma boa cantora? Qual é? Ainda mais depois deste último disco?
(Nara Leão, como se verá aqui, gosta muito de Romance Popular, seu disco lançado este mês – junho de 1981 – pela Polygram).
– Este ano de 81 eu invoquei com esse negócio. Eu agora vou brigar por isso. Já briguei por tantas outras coisas, agora vou brigar por mim também. Canto bem, sou afinada, minha voz tem potência. Daqui até o outro quarteirão me escutam, se eu quiser.
De bem com a vida
Esta Nara Leão segura, forte, firme na defesa de seus atributos, membro da “turma do narcisismo” , como ela mesma diz, brincando, talvez tenha pouco a ver com o que a memória das pessoas em geral guarda de Nara Leão, a que já foi musa da bossa nova, a que fez o País cantar com “A Banda”, a que durante bons anos foi mais mãe de família que cantora popular – uma moça tímida, arredia, sempre parecendo um tanto sem jeito, pouco à vontade, ao pisar no palco diante das luzes e das platéias. E, de fato, Nara Leão parece mudada.
Não é apenas por causa desta certeza, que ela agora expõe ao mundo, de que é uma boa cantora. Outras coisas vêm juntas. Ela está naquilo que as pessoas chamam hoje de um bom astral. Está vivendo um período solar. Está bonita, parece uma garota – confira na foto da capa de seu novo disco. Vai voltar aos shows, no próximo dia 7 de agosto, no Tuca – ela, que escassos 12 meses atrás dizia que nunca mais faria shows.
Nara Leão está de bem com a vida, o mundo, as pessoas.
A questão da foto da capa do disco, por exemplo, mostra isso. Nara já admitiu que, na foto, está “mais bonita” do que é, na realidade: “Geralmente, pareço mais feia”.
– É, eu estou bem na foto. Eu comparo esta de agora com as outras capas dos discos, e vejo isso mesmo. Nas outras, eu estava sempre meio de lado…. Não tem uma capa com uma foto assim, frontal. Quer dizer, no disco do Roberto Carlos (… e que tudo mais vá pro inferno, lançado em 1978, com 12 musicas de Roberto e Erasmo Carlos) tem uma foto frontal, mas o clima é meio desesperado. Uma cara meio assim, não se sabe se fugida do Pinel ou que vai se suicidar. Não é um momento irradiante. Não é um momento solar.
O contrário deste momento de agora.
– Este é um disco com alto astral – ela já disse. – Mesmo se fosse qualquer outra cantora que fizesse esse disco, que estreasse com esse disco, ia ser o maior sucesso. Porque o repertório, os arranjos, as idéias, tudo… Está tudo maravilhoso, tem uma força… O disco vale sozinho.
Um disco com um sabor de Nordeste
Este Romance Popular é o resultado de um trabalho de Nara com um amigo antigo, Fagner, e com um amigo recente, Fausto Nilo – cearense de Quixeramobim, arquiteto, professor e letrista, parceiro de Fagner, Moraes Moreira, Roberto de Carvalho, Robertinho de Recife, Petrúcio Maia, o Arnaldinho da Cor do Som, e vários outros músicos novos ou ainda não absolutamente consagrados.
Nara vinha de uma série de discos elaborados com uma proposta clara, uma unidade temática nítida: em 1975, fez Meu Primeiro Amor, cantando as canções que costumava cantar para os filhos Isabel e Francisco; em 1977 fez Meus amigos são um barato, em que dividia cada faixa com o amigo autor da música (Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo, Dominguinhos, Tom Jobim…); em 1978 veio o disco só com as músicas de Roberto e Erasmo; no ano passado, lançou Com açúcar, com afeto, só com músicas de Chico Buarque.
Depois disso, andou pensando em fazer mais um disco com músicas de um único autor. Pensou em Assis Valente, o genial compositor de “Camisa Listrada”, “… e o mundo não se acabou”, “Uva de caminhão” e “Fez bobagem” (música, aliás, que Nara gravou no seu LP Coisas do Mundo, de 1969). Pensou também em Caetano Veloso – e hoje reconhece que não ia ser muito fácil gravar um disco só com músicas dele:
– Eu acho ele fantástico, eu adoro o Caetano. Agora, é um problema… Porque eu acho que ele está cantando muito bem. Ia ser muito difícil cantar igual a ele. Ele está cantando simplesmente como ninguém.
Não tocou nenhum desses projetos para a frente. Como ela mesma diz, “não adianta ter uma idéia preconcebida sobre como vai ser o próximo disco. Depende do que acontecer, do que eu ouvir, do que eu gostar”.
Resolveu fazer um disco com músicas inéditas. Ouviu horas e horas de fita gravada, não gostou especialmente de nenhuma (“era como num concurso de miss – disse ela. – Todas as músicas bonitinhas e todas sem graça”). Aí telefonou para Fagner, perguntando se ele não teria uma música nova para ela. Ele respondeu que tinha o disco inteiro.
Fagner já disse que há oito anos pensava em produzir um disco de Nara Leão – desde 1973, quando eles se conheceram. Certamente ele até hoje é grato a Nara, pois ela, naquele começo dos anos 70, foi uma importante madrinha do cantor e compositor desconhecido que descia do Nordeste para o Sul Maravilha: em seu primeiro LP, Manera, Frufru, Manera, o moço cearense, então 23 anos, pôde contar com a participação especial da já consagradíssima cantora, nas faixas “Penas do Tié” e “Pé de sonhos”. (Fagner teve ainda outros padrinhos, naquele início de carreira no sul: em 1973 mesmo, cantou junto com Chico Buarque a música tema de “Joana Francesa”, o filme de Cacá Diegues, na época casado com Nara.).
Mas Fagner então apareceu com uma série de sugestões para Nara gravar em seu novo disco. Por algum tempo, Nara duvidou um pouco do propósito do amigo, de produzir o seu disco: afinal, de 73 para cá Fagner tornou-se uma estrela, “e as estrelas costumam ser muito narcisistas, não é?” – e ele tinha seus shows, e estava produzindo outros discos. Mas em pouco tempo a coisa engrenou. Fagner apresentou Fausto Nilo a Nara, e os três passaram três meses juntos, escolhendo o repertório, discutindo sobre o som de uma palavra colocada aqui, ou o de outra ali. Entenderam-se bem; Nara gostava muito das músicas que iam sendo escolhidas:
– O Fausto Nilo tem uma forma de trabalhar muito parecida com a minha. O Fagner é diferente de mim e dele. Ele vinha às vezes para bagunçar. Eu estava pensando em gravar tal música, ele vinha e dizia “não, que tal gravar aquela outra?”. Mas isso também foi bom. O Fagner é ótimo para isso. Ele dá para a gente um gás danado, ele tem um pique incrível… Gostei de trabalhar com eles. Foi um barato.
Das 12 músicas finalmente escolhidas, apenas duas já haviam sido gravadas antes (“Penas do Tié” e “Bloco do prazer”). Em cada uma das 12 há pelo menos a parceria de um autor nordestino. Os autores das músicas e das letras são Roberto de Carvalho, Fagner, Fausto Nilo, Moraes Moreira, Capinam, Stélio Vale, Xico Chaves, Geraldo Azevedo, Nonato Luiz, Fernando Falcão e os irmãos Clodo, Climério e Clésio. Há ainda um poema do maranhense Ferreira Gullar, musicado por Fagner, e uma letra da própria Nara, em co-autoria com Fausto Nilo.
A gravação em si durou um mês, de 16 de março a 16 de abril. “Eu já vou para o estúdio com o disco todo pensado” – diz Nara. – Defino tudo antes, os arranjos, a hora que entra o triângulo, a hora que entra a flauta. Meus discos normalmente acabam antes do prazo.”
E ela ficou de fato satisfeita com o resultado. Não esconde isso. Gostou muito do último disco.
Tem até ouvido os discos antigos de Nara Leão. Diz que, de fato, antes não ouvia muito os seus próprios discos: “Agora tenho ouvido. Estou gostando.” Pediu à gravadora que organizasse uma relação de todos os discos que já gravou, para que ela possa controlar melhor na cabeça, sua discografia, as datas de lançamento, tudo.
Uma antena sensível
Romance Popular foi chamado, em jornais do Rio, do 19° disco de Nara Leão. Não é. Contando todos, são 26, em 17 anos de carreira: 15 exclusivamente dela, mais nove dos quais participa, ao lado de outros cantores, mais duas coletâneas de sua obra. (Ao ouvir este número, 26 discos, ela própria se surpreende. Em seguida, comenta: “Pois é, e tem gente que diz que eu sou preguiçosa, que não trabalho muito…”).
A discografia de Nara Leão confirma que, de fato ela tem uma rara sensibilidade na escolha do que vai cantar. E, se agora ela vem a público afirmar que sabe que canta bem, ao contrário do que muitos dizem, ela não tem por que negar esta qualidade reconhecida por todos, de saber (talvez como ninguém) escolher seu repertório.
(Aqui, convém fazer um parêntese para lembrar um pouco dessa qualidade de Nara Leão. Em 1964, ela lançou pela hoje extinta gravadora Elenco seu primeiro LP. Ela era chamada, então, de “musa da bossa nova”. No entanto, em seu primeiro disco já havia várias músicas não da bossa nova do universo restrito Copacabana-Ipanema-Leblon (que era o que todo mundo cantava, na época), mas de compositores de morro, como, por exemplo, Cartola e Nelson Cavaquinho. Ela praticamente os redescobriu, ao descobri-los para a Zona Sul do Rio e daí para os discos e o país inteiro. Outro exemplo: Nara Leão foi a primeira cantora famosa a gravar músicas de um rapaz promissor que estava surgindo em 1966, chamado Chico Buarque de Hollanda. Foi a primeira a gravar o talento, até hoje não inteiramente reconhecido, de Sidney Miller. Foi das primeiras a gravar Paulinho da Viola. Quando Gil e Caetano fizeram o tropicalismo, ela estava lá, ao lado deles. Em 1969, muito, mas muito antes que a música latino-americana passasse a ter algum sucesso, ela gravou “Parabién a la colomba”, do chileno Rolando Alarcón).
Pois Nara, é claro, reconhece essa qualidade de saber bem escolher o que vai cantar. Mas é uma coisa, segundo ela, inteiramente intuitiva:
– Não é uma coisa racional. Acho que é uma questão de sensibilidade, sim. Depois, eu posso até fazer uma porção de teorias sobre por que razão escolhi essa ou aquela música, mas só muito depois. Nem sei se as teorias são válidas. Mas, basicamente, o que importa é se a música me pega, de repente. É como gostar de alguém à primeira vista. É se aquela música me enche o saco ou me enche os olhos, entendeu?
Nesse ponto, Nara se permite uma certa comparação com o que disse, em uma entrevista que ela leu recentemente em um jornal, o líder operário polonês Lech Walesa:
– Eu vejo que muitas pessoas demoram muito para perceber certas coisas. O Lech Walesa dizia, em uma grande entrevista, que aprecia os intelectuais, acha os intelectuais importantes – só que são uma pessoas engraçadas. Ele dizia: “Os intelectuais às vezes levam dez dias discutindo, para chegar a uma conclusão à qual eu já cheguei faz tempo – eu, que nunca li um livro”. Talvez seja um pouco de pretensão eu querer me identificar com ele, mas eu percebo que tenho essa coisa assim de sacar rápido. É como se eu tivesse uma antena. E eu acho bom, isso. Faz com que eu não fique atrasada, retardada. E acho que isso é que é o artista, não é? A pessoa que tem a sensibilidade de detectar certas coisas, certos problemas, que são da sua época, ou que estão um pouco adiante da sua época e as outras pessoas não estão percebendo ainda.
De volta ao palco
Agora, Nara se prepara para o show – o show que ela afirmava não iria dar. Garante que não houve imposição da gravadora para que ela fizesse um show, forma segura de divulgar um disco e faze-lo vender mais. Apenas voltou a ter vontade de se apresentar em público – principalmente porque seu velho amigo Flávio Rangel estava interessado em dirigir Nara em um show.
Nara conhece Flávio Rangel desde 1960. Ele a dirigiu em Liberdade, Liberdade, no Teatro Opinião do Rio, em 1965. Já dirigiu peças como O Pagador de Promessas, A Morte de um Caixeiro Viajante, Santa Joana, Esperando Godot, Pippin, O Santo Inquérito e Édipo Rei, e shows de gente como Simone e do Grupo Raízes da América.
– Eu acho Flávio Rangel um grande diretor de teatro. E ele me conhece muito bem, conhece muito bem meu trabalho. E acontece que eu fiquei muito encantada com a possibilidade de fazer um show organizado. Que começasse na hora. Em que o microfone funcionasse. Em que, quando eu aparecesse, a luz acendesse onde tem que acender. E essas coisas todas são garantidas, com Flávio Rangel.
Nara se lembra muito bem do que era impossível dar show organizado, seguir uma agenda, sem surpresas, sem tropeços, alguns anos atrás. No tempo em que ela fazia muitos shows, na década de 60, as coisas eram muito diferentes. As apresentações eram marcadas quase na véspera, e tudo tinha que ser preparado às pressas – viagem corrida, equipamentos arranjados de última hora. No Teatro Paramount da época dos festivais e dos programas da Record – ela se lembra bem -, os artistas tinham que esperar nas coxias a vez de entrar no palco: não havia sequer camarim.
Foi por acaso que se definiu que o show Romance Popular (mesmo nome do disco), seria em São Paulo, a partir do dia 7 de agosto. É que entrou no circuito, no momento em que Nara e Flávio Rangel se dispunham a preparar um show, o produtor e empresário paulista Fred Rossi. O Tuca estava livre por três semanas (de quinta a domingo), no mês de agosto. Escolheu-se esta data. Os três – Flávio, Nara e Fred – criaram uma cooperativa e com ela vão montar e produzir o show. Show montado, eles decidirão o que fazer – se vão para outras cidade, se não. Por enquanto, a preocupação é apenas essa temporada no Tuca.
Nara e Flávio têm se reunido para tratar da escolha do repertório (o show será basicamente em cima do último disco, mas músicas dos discos antigos também vão entrar) e da preparação do roteiro. Quanto ao acompanhamento, Nara não se preocupa: deixou tudo nas mãos de Robertinho de Recife, com quem ela trabalhou neste Romance Popular e por cuja música se apaixonou.
– Estou, hoje, muito impressionada com o trabalho de dois músicos. Chamam-se Robertinho de Recife e Oswaldinho. (Robertinho toca guitarras e violão em cinco das 12 músicas de Romance Popular; Oswaldinho toca acordeom em duas). Robertinho de Recife, sozinho, é uma orquestra. Eu o convidei para dividir o show comigo, mas ele não quer tocar muito, quer ter apenas uma participação especial. Ele vai escolher os outros músicos: um ritmista, um contrabaixista, teclados, e duas moças que fazem o coro.
Agora, uma coisa é certa, diz Nara:
– Eu não vou agitar. Eu não vou fazer 95 shows. Ou então vou fazer 95 shows, mas no espaço de dois anos. Eu não vou abrir mão de ser uma pessoa normal, de levar uma vida normal. Isso eu não agüento.
A última série de shows que Nara Leão deu foi em 1977. Trabalhou ao lado de Dominguinhos, no Projeto Pixinguinha, em São Paulo, no Rio e em Belo Horizonte. Em Belo Horizonte, os filhos Francisco e Isabel subiram no palco gritando com a mãe que queriam ir embora para casa. Nara ainda se apresentou com Dominguinhos pelo Nordeste – Recife, João Pessoa, Salvador. No ano seguinte, 1978, teve uma participação nos shows que comemoraram os 20 anos da bossa nova, ao lado de gente como Carlos Lyra, Dick Farney, Lúcio Alves, Alaíde Costa, Oscar Castro Neves – mas foi uma temporada pequena, de poucas apresentações em apenas algumas das principais capitais. Em 1979, ela foi hospitalizada. Depois disso, apenas uma vez ela subiu a um palco: no começo deste ano, no Festival de Verão do Guarujá. Ela mesma diz que não queria ir, Fagner é que insistiu (“Ele chega, fala vamo lá, deixa de preguiça, vai pra rua. Vai fazer o Guarujá. Não vou, tô com medo. Vai, sim…”).
Sem culpas
Nara Leão afirma que não se sente uma pessoa mutante. Acha que, na verdade, não existem grandes mudanças, em sua vida, em sua personalidade. Prefere usar para a sua vida a imagem de uma pessoa que vai caminhando por uma estrada, colhendo aqui e ali os frutos que a existência coloca à sua disposição:
– Eu não tenho nenhuma intenção de mudar. Quando os outros dizem que eu mudei, eu não tive intenção de mudar, nem pretensão de mudar. Nem intenção de fazer nada novo. Corresponde a uma necessidade minha. Necessidade de ter um papo novo, porque aquele outro tá chato. Sabe? Eu me sinto recebendo coisas novas, impulsos novos e energias novas, juntando isso com a minha energia, recarregando a minha energia. É como se eu estivesse andando por uma estrada, pegando uma manga aqui, um caju ali, uma pêra acolá. A vida vai indo, e eu vou caminhando.
Mas eis que a Nara não mutante está aí, mudada: topando fazer shows, coisa que não queria mais fazer; se sentindo mais à vontade para falar de si, coisa que não sentia antes; gravando um disco alegre, aparecendo jovial e bonita na capa, quando há tão pouco tempo parecia mais uma pessoa saída de um hospital para doentes mentais ou alguém que vai se suicidar.
O que mudou? Como?
Nara diz que não sabe ao certo. Mas, quando começa a falar sobre isso, volta-se irresistivelmente para a doença que teve em 1979.
– Eu tive um convulsão. Inexplicada. Ou, aliás, com tanta explicação que ficou sem explicação.
Ela passou por três médicos e diversos diagnósticos. Suspeitou-se até de câncer no cérebro. Falou-se em tumor no cérebro, em coágulo de sangue no cérebro, em problema congênito no coração, em stress da vida. Ela se sentiu, pela primeira vez, muito próxima da morte. E está viva, e se sentindo bem melhor, recebendo dos médicos a certeza de que em dois anos não deverá sentir mais absolutamente nada. (Ainda tem, de vez em quando, vertigens; vê estrelinhas, as coisas ficam fora de foco; dura um minuto ou menos, depois passa. É uma experiência dolorosa, mas com a qual ela pode conviver, desde que não se agite muito, coma e durma em horários regulares, descanse um pouco depois do almoço, tome os medicamentos receitados).
– Eu fico contente porque o tempo vai passando e eu vou melhorando (e aqui ela não está falando da doença, e sim de sua cabeça, sua vida). Eu tô ficando mais velha e tô me sentindo melhor. E isso é uma coisa tão boa, não é?
– Depois – continua -, eu estive muito próxima da morte. A gente nunca pensa que vai morrer. Eu realmente nunca pensei, sabe? Mas então eu tive essa proximidade de um perigo real. E eu não tive medo da morte. Eu não fiquei religiosa, com essa coisa da morte. Fiquei igual.
(Há alguns meses, ela já dizia: “Deus é uma coisa que não ocupa os meus pensamentos. Existem coisas, já e agora, para serem resolvidas com mais urgência”).
Sentiu-se querida, amada pelas pessoas, os amigos. “Antes, eu via todo mundo como querendo me sufocar. E depois disso, não. Essas demonstrações de afeto das pessoas começaram a me comover. Eu comecei a perceber que eu poderia me aproximar mais das pessoas”.
Fez análise durante nove anos, mas muito cedo, segundo diz agora (“Quando eu casei, em 67, já tinha feito”). Acha a análise uma coisa muito distante para ela, hoje, e não vê muita relação entre a análise que fez há muito tempo e a sua libertação, mais recente, de velhas culpas:
– Realmente, é muito dura a vida de tantas pessoas. Eu acho que eu sentia uma culpa muito grande porque nem todos podiam gozar dos privilégios que eu gozava. E esse sentimento de culpa me fazia não aproveitar aquilo que o meu sucesso, a minha fama, me deu. Eu achava muito injusto que, enquanto eu tinha tantas oportunidades, tantas outras pessoas…
– Eu sempre vivi nesse tipo de dilema, pensando nos problemas, a injustiça social. Talvez muita coisa se resuma no seguinte. Antes, eu tinha consciência, vamos dizer, dos problemas sociais, da injustiça – e a infelicidade de tantas pessoas, de tanta gente, me deixava com a obrigação de também ser infeliz. Agora, eu tenho consciência de tudo aquilo, mas nem por isso eu preciso ser infeliz. Eu quero batalhar pela minha felicidade, também.
É isto. Nara Leão se aproxima dos 40 anos (que completará no dia 19 de janeiro do ano que vem) sentindo-se melhor que no passado. Mais em paz com o mundo. Bem disposta. Aparentando juventude, força, alegria, na capa e nas faixas do disco. Sem culpas.
Possivelmente é a isso que se chama maturidade.
A historinha por trás do texto
Este texto é um dos meus maiores orgulhos do período em que escrevi sobre música no Jornal da Tarde, entre 1981 e 1984. Acho que o maior. Na verdade, acho que foi uma das melhores coisas que fiz em 37 anos de jornalismo. Nara é um dos meus maiores ídolos, desde que apareceu, desde seu primeiro disco, de 1964, quando eu tinha 14 anos. Pô, meu, entrevistar a Nara, na casa dela! É a glória, é uma sorte grande!
Não me lembro de quem foi a idéia – se fui eu que pedi ao pessoal da Variedades, ou se foram eles que sugeriram. De fato não me lembro. Acho que o pauteiro na época era o César Giobbi, grande figura. Se não foi idéia dele, o fato é que ele aprovou, e o jornal bancou a viagem São Paulo-Rio-São Paulo para que eu fizesse a entrevista.
Nara estava morando num apartamento em Ipanema, perto da Visconde de Pirajá e da Praça General Osório; um predinho bem antigo, de três andares – o apartamento dela era no térreo. Cheguei lá com um monte de laudas, canetas, um gravador gigantesco, um caixotão, e a discografia dela, levantada por mim. Quando mostrei a relação dos discos ela se espantou – até registrei isso na matéria, o espanto dela ao saber que tinha gravações em 26 discos.
Fiquei umas duas horas lá, acho. Nara era de uma simplicidade fascinante – nada de estrela, de star, de pessoa famosérrima, nada, nadica. Uma pessoa comum, normal, sem qualquer afetação. Respondeu com paciência de Jó a absolutamente tudo que perguntei.
Claro, eu sabia da doença, o tumor no cérebro. Mas fui cuidadoso ao tratar disso, tanto na hora da entrevista quanto no texto da reportagem.
O escritor e pesquisador Sérgio Cabral, pai, citou a entrevista na biografia que escreveu, Nara Leão, Uma Biografia, lançada em 2001 pela Lumiar Editora – em cuja capa, aliás, está uma foto de Nara feita na sessão de fotos para a capa do LP Romance Popular, que ele estava lançando naquele ano de 1981. Está lá na página 200 do livro:
“Voltou a falar da doença para O Estado de S. Paulo: ‘Estive muito perto da morte. A gente nunca pensa que vai morrer. Realmente, nunca pensei, sabe? Mas não tive medo da morte, nem fiquei religiosa. Fiquei igual.’ Quanto ao seu desempenho como cantora, disse que resolveu entrar ‘para a turma do narcisismo’, por estar cansada de ouvir dizerem que tinha bom repertório, era inteligente, mas não tinha voz. ‘Desconfio que, para os críticos, as pessoas não podem ter dois atributos. Tônia Carrero passou a vida toda sendo chamada de mulher bonita e péssima atriz. Parecia que ser bonita e boa atriz eram coisas incompatíveis. Só agora estão vendo que ela é uma excelente atriz. Por tudo isso, resolvi brigar: canto bem, sou afinada e tenho potência. Daqui até o outro quarteirão me escutam, se eu quiser.’ Ao comentar o disco, Tárik de Souza, do Jornal do Brasil, escreveu que ela era ‘uma das raras cantoras pensantes do país’.”
Mandei uma carta para Sérgio Cabral, pai; não pedi que ele citasse meu nome, mas sugeri educadamente que, numa nova edição do livro, corrigisse a informação errada – “voltou a falar da doença para o Estado de S. Paulo”. Não foi para o Estadão, pô, foi para o Jornal da Tarde. Não houve resposta. Em 2009, fiquei sabendo que ele preparava uma nova edição do livro, e novamente mandei uma mensagem, através da editora, sugerindo a correção. Não houve resposta.
As fotos que Nara fez para a capa de Romance Popular realmente são maravilhosas. Ela está linda nelas, linda, deslumbrante, bem produzida, maquiada, colorida. Anélio Barreto, que editou a página com minha matéria, notou isso, e, em vez de usar as fotos feitas pelo fotógrafo da Sucursal do Rio durante a entrevista que ela deu para mim, usou a foto da capa de Romance Popular, ao lado da foto em que ela aparece com uma expressão tristíssima, na capa do LP dedicado a Roberto e Erasmo Carlos, de três anos antes, 1978 (“Uma cara meio assim, não se sabe se fugida do Pinel ou que vai se suicidar”, segundo ela mesma disso na entrevista). E meteu um título em letras imensas, em caixa alta:
NARA: TRANSFORMAÇÃO.
Foi uma bela edição. Anélio é um grande editor.
Servaz, querido
você fez um texto emocionante — porque íntimo — com a Nara. Que bom que você não foi burro como eu e fez fotos com ela. Ponha mais maravilhas como esta no site! Por favor!
LAIS DE CASTRO
Sérgio,
li, reli, sei que vou ler de novo. Afinal, Nara te deu uma entrevista como se estivesse cantando, não é? Devagarinho, como quem não quer nada, dizendo tudo.
Pois é, quando nossa paixão por ela começou, você tinha 14 anos, eu tinha 24. Não sei como a Nara não ficou rouca pelo resto da vida, de tanto que a gente rodava aqueles maravilhosos lps nas esquinas de BH…
Bons tempos, meu amigo. E bela entrevista, que me deixou, também, com saudade do Anélio.
Parabéns, e um beijo.
Vivina.
Que entrevista belíssima, belíssima! Encontrei por acaso uma entrevista clássica e de quebra descobri esse site sensacional, obrigado por dividir tanta coisa boa!
Lech walesca que nunca lera um livro,e não a Nara né.