Cacá Diegues

“Quando começamos, tínhamos 18 ou 20 anos, e éramos modestíssimos, queríamos mudar a história do cinema brasileiro, a história do cinema mundial e se possível todo o planeta.”

Não sei quando Cacá Diegues deu essa definição – ela é citada no verbete sobre ele da preciosa Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de 2000, organizada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda. Mas não importa tanto a época em que foi dita – a frase é uma absoluta maravilha.

Cacá tinha 22 anos quando estreou Cinco Vezes Favela, filme produzido pelo Centro Popular de Cultura da UNE, composto por cinco curta-metragens, dirigidos por jovens que criavam o cinema novo – Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges, Marcos Farias e ele, autor do segmento “Escola de Samba Alegria de Viver”.

Interessante, isso: já no início de sua carreira, Cacá Diegues unia cinema e música. A música seria fundamental ao longo de toda a sua gloriosa carreira de realizador. Seus filmes mostraram canções de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben, Rita Lee; fizeram Chico, Nara Leão e Maria Bethânia trabalharem como atores, e Jeanne Moreau cantar em uma mistura de francês com português.

Ele se arriscou até como letrista-tradutor – mas isso foi uma vez só.

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Isto aqui não pretende, de forma alguma, ser uma análise do trabalho extraordinário do cineasta Carlos Diegues. Não tenho conhecimento nem fôlego suficientes para tanto. Mas, diabo, não queria deixar de registrar algumas coisas sobre essa figura tão importante da cultura brasileira, no dia em que ele se despediu de nós e foi ser recebido pelos anjos.

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Começo pelo episódio – creio que bem pouco conhecido – do Cacá Diegues letrista-tradutor. Mas é preciso dar uma contextualizada.

Após o segmento de Cinco Vezes Favela, Cacá realizou seus dois primeiros longas, Ganga Zumba, de 1963, e A Grande Cidade, este de 1966, já depois que a quarta-feira de Cinzas da ditadura militar havia baixado sobre o país. O filme seguinte, Os Herdeiros, ficou pronto em 1969, depois que o AI-5 tornou a ditadura muito mais dura, e foi proibido pela censura. Cacá e Nara Leão, que haviam se casado em 1967, se auto-exilaram em Paris, onde ele diria que passou dois anos tentando arranjar um jeito de fazer algum filme – sem sucesso. Nara, no entanto, naquele período no exílio gravou um álbum duplo, seu primeiro disco inteiramente de bossa nova, Dez Anos Depois – e deu à luz Isabel, o primeiro dos dois filhos do casal. Francisco, o segundo, nasceria em 1972, a família já de volta ao Rio de Janeiro.

Ainda em 1971, o mesmo ano de Dez Anos Depois, e como resultado de seu séjour parisiense, Nara gravou um compacto duplo, como eram chamados os disquinhos de 33 rpm e 7 polegadas, ou 18 centímetros, com quatro canções de letras vertidas para o português. A própria Nara assinou as versões de três músicas de Georges Moustaki – “Le Météque”, “Il y Avait un Jardin” e “Votre Fille a Vingt Ans”. Cacá assinou a letra em português de “Father and Son”, de Cat Stevens.

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“No início de junho de 1981, peguei um avião e fui a Sintra, tentar convencer Glauber Rocha a voltar para o Brasil e tratar de sua saúde no país. Dois grandes amigos nossos, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, ambos em temporada portuguesa, estavam solidários com este complô do bem.”

Esse parágrafo é o início da Introdução que Cacá Diegues escreveu em seu livro O Diário de Deus é Brasileiro, lançado em 2003 pela Editora Objetiva. Pouco adiante, ele define sua missão como “semifracassada”: “Glauber prometera voltar dentro de uns dias, mas eu desconfiava de que não estava sendo sincero”.

Glauber foi trazido para o Brasil depois de uma internação de 18 dias em hospital de Lisboa, e levado para uma clínica do Rio, mas morreu ali, em agosto de 1981, de septicemia, após uma broncopneumonia; tinha apenas 42 anos – exatamente a metade da idade com que Cacá Diegues foi embora.

Citei o início da introdução do livro de Cacá porque queria falar de uma coincidência que o une ao amigo Glauber Rocha – e também como exemplo de que ele era, sim, um homem das Letras. Um belíssimo texto, que os leitores do jornal O Globo podiam apreciar em seus artigos semanais no Segundo Caderno.

Não era um outsider das Letras, de forma alguma, quando foi escolhido, em agosto de 2018, para ocupar a Cadeira Número 7 da Academia Brasileira de Letras, que já havia sido de Nelson Pereira dos Santos.

As coincidências: quatro diretores brasileiros tiveram a honra de ter três de seus filmes selecionados para a mostra competitiva do Festival de Cannes: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues e um mais jovem que os três primeiros, Walter Salles.

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Em um dos seus últimos artigos em O Globo, no dia 19 de janeiro, Cacá falou do último filme de Walter Salles:

Ainda Estou Aqui é um desses filmes capaz de nos comover e indicar os males que nos incomodam e perturbam nossa existência numa determinada situação social cujas raízes não temos como eliminar. Um filme como o melhor de Martin Scorsese. Ou do grande Billy Wilder de Cinco Covas no Egito ou Pacto de Sangue”.

O título do artigo era “A vida vale a pena”, e Cacá abria seu texto se referindo a ela: “De todas as expressões de Fernanda Torres sobre seu trabalho como Eunice Paiva no grande sucesso do cinema brasileiro Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, essa foi a que calou mais fundo no meu coração.”

E, no final do texto, ele voltava à expressão “A vida vale a pena”:

“Fernanda Torres é parte de uma dinastia artística que simboliza não apenas talento, mas também a transmissão de valores entre gerações. Ela sabe direitinho o que diz e o que faz. Fazer a vida valer a pena não significa acumular riquezas ou status, mas sim viver com propósito, em equilíbrio. A mensagem que fica é que a vida deve ser um palco para a expressão pessoal. Que cada um de nós encontre seu próprio caminho para fazer da vida uma honra.”

Em sua bela reportagem em homenagem a Cacá Diegues, o Jornal Nacional desta sexta-feira, 14/2, citou as últimas frases do artigo de Cacá. Fez bem. Vale mesmo a pena repeti-las. “Que cada um de nós encontre seu próprio caminho para fazer da vida uma honra.”

Walter Salles fez uma bela declaração: “Cacá Diegues era um Mestre amoroso e lúcido, de uma profunda inteligência e generosidade. É uma perda irreparável para o cinema brasileiro e para a cultura do país. A sua obra fica para sempre, graças a grandes filmes como Bye Bye Brasil e longas de uma extrema delicadeza como Chuvas de Verão, movidos pelo desejo que Cacá tinha de traduzir a identidade brasileira na tela do cinema. Perdi hoje um farol e um amigo.”

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Sobre as colaborações de Cacá Diegues com aqueles grandes compositores citados lá em cima, é preciso registrar:

* Caetano Veloso assinou a trilha sonora de Tieta do Agreste (1996);

* Gilberto Gil fez a trilha de Um Trem Para as Estrelas (1987);

* Jorge Ben é o autor da canção que tem o mesmo título do grande sucesso Xica da Silva (1976), estrelado pela atriz e cantora Zezé Motta;

* Rita Lee e Roberto de Carvalho assinaram a trilha sonora de Dias Melhores Virão (1989);

* Jeanne Moreau foi importada da França para as locações em União dos Palmares, Alagoas, de Joanna Francesa, lançado em 1973. A musa de François Truffaut, Michelangelo Antonioni, Louis Malle e tantos outros, que de fato dedicou algum tempo à carreira de cantora, gravou a maravilha que é “Joanna Francesa”, composta para o filme por Chico Buarque, em um daqueles momentos de especial inspiração de que a vida dele é repleta, em que mistura a palavra geme com o som de j’aime, de acorda acorda acorda com d’accord, d’accord, de “o mar, marée, bateau” com o mar me arrebatou… “Tu ris, tu mens trop / Tu pleures, tu meurs trop / Tu as le tropique / Dans le sang et sur la peau / Geme de loucura e de torpor / Já é madrugada / Acorda, acorda, acor d’accord, d’accord…”

* Bem… Chico Buarque é um caso à parte – sempre.

Chico compôs para Quando o Carnaval Chegar (1972), para Joanna Francesa (1973) e para Bye Bye Brasil (1980). No primeiro deles, atuou como ator, ao lado de Maria Bethânia e Nara Leão, cantoras que sempre gravaram muitas de suas músicas.

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Achei interessante, ao reler agora o artigo de Cacá Diegues sobre Ainda Estou Aqui, o fato de ele citar Martin Scorsese e Billy Wilder, ao falar do filme de Walter Salles. Parece que é mesmo uma mania das pessoas que gostam de filmes citar outros realizadores, fazer alguma comparação, encontrar coincidências, temas comuns entre diversas obras.

Euzinho aqui, que sou apenas e tão somente uma humildérrima pessoinha que gosta de filmes, encontrei coincidências entre Bye Bye Brasil, aquela maravilha, e outras obras:

“Depois de rever agora Bye Bye Brasil”, escrevi, fascinado, em maio de 2018, “fiquei pensando que o filme  pertence a um veio de obras sobre andanças de grupos mambembes, que inclui diversos musicais americanos dos anos 30 a 50, como, por exemplo,  Sangue de Artista/Babes in Arms (1939) e O Mundo da Fantasia/There’s No Business Like Show Business (1954), e também como Mulheres e Luzes/Luci del Varietà (1951), o primeiro filme de Federico Fellini como diretor, dividindo a tarefa com Alberto Lattuada.

“Não dá para saber se Cacá Diegues pensou em Mulheres e Luzes quando resolveu escrever a história e o roteiro de Bye Bye Brasil. Claro que ele tinha visto o filme, provavelmente mais de uma vez. Achei interessante me lembrar dele. Um tem a ver com o outro. Mulheres e Luzes também mostra coisas que estavam nascendo e coisas que estavam acabando na Itália daqueles anos de reconstrução pós-guerra.”

Achar semelhanças, coincidências, entre os filmes. Lembrar de outros grandes realizadores, quando se escreve sobre um filme. Quando escreveu sobre o filme do jovem Walter Salles (16 anos mais novo que ele, afinal…), Cacá se lembrou de Martin Scorsese e Billy Wilder.

Quando viu Bye Bye Brasil, Roger Ebert – o sujeito que gostava profundamente de ver os filmes,  um dos melhores críticos de cinema que já houve, se não for o melhor de todos – se lembrou de Dennis Hopper, Stanley Kubrick, Federico Fellini e Francis Ford Coppola.

Ebert era homem de textos longos. Transcrevo aqui uma parte.

“É raro nos depararmos com verdadeiras grandes imagens de cinema, e nós as guardamos como ricos souvenirs – imagens como Jack Nicholson com o capacete do futebol americano em Easy Rider, o osso se transformando na nave espacial em 2001, o pavão abrindo suas penas na neve em Amarcord e o ataque de helicóptero em Apocalypse Now.

“A essa curta lista de grandes imagens, um filme chamado Bye Bye Brazil adiciona mais uma. Uma pequena, pobre trupe de artistas viajantes está apresentando um show numa cidadezinha brasileira. As pessoas se sentam juntas em um lugar suarento, cheio de fumaça, enquanto o mágico cria por um breve momento a ilusão de que ele e sua audiência são mais sofisticados do que são mesmo. É o momento do clímax da sua apresentação, e ele surge com uma imagem totalmente inesperada por sua audiência, e por nós: Bing Crosby canta ‘White Christmas’ enquanto neva sobre seu público.

“Aquele momento fornece mais que uma imagem. Fornece um balanço sucinto de Bye Bye Brazil, um filme que existe exatamente na falha geológica entre a civilização moderna do Brasil e os remansos calmos de seu interior. O filme mostra o Brasil como uma nação em que a cultura ocidental assimilada pela metade (na forma de Bing Crosby, sistemas públicos, políticos) coexiste com pobreza, superstição, simples sentimentos e o fato permanente da existência da floresta tropical.”

E mais adiante: “O filme nos mostra uma sociedade que a maior parte das audiências americanas nunca viu nos filmes, o mundo de lugarejos bem pequenas do Brasil espalhadas ao longo de estradas que as ligam às demais cidades. A televisão ainda não chegou à maior parte desses lugares. A eletricidade é incerta. Os artistas fornecem mais que música e magia; eles provêem uma ligação com o estilo que é mais fascinante às audiências do que os truques do mágico. As pessoas não pagam tanto para ver o show, mas para se maravilhar diante desses seres estranhos que falam a mesma língua mas poderiam ter vindo de outro planeta”.

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Roger Ebert seguramente agora vai procurar Cacá para lhe dar as boas-vindas.

Nara terá chegado primeiro, é claro. Nara sempre chegou em primeiro lugar, com aquelas fantásticas antenas parabólicas que Deus lhe deu.

Espero que o Cacá ouça meu pedido de dar um abraço nela por mim.

14/2/2025

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