O fenômeno Titanic e a pequenez

O Titanic é um dos maiores fenômenos da História. É um troço tão fora de série, fora de jeito, maluco, estrondoso, absurdo, que é fenômeno até mesmo neste + de 50 Anos de Textos.

O site tem 12 anos e meio de idade e mais de 4,7 mil posts. Reúne, além dos meus, textos de amigos, alguns deles pessoas importantes, é verdade, e tem muita coisa boa – mas, a rigor, é um sitezinho bastante humilde, coisa de amador, lido basicamente ali por uns cinco ou sete amigos fiéis, não mais que isso. Jamais pagou um centavo para se promover nas redes sociais. O ibope dele beira traço – consegue perder até para a TV Lula, que até uns meses atrás, e durante quatro anos, foi TV Bolsonaro.

O texto mais lido neste site, que ganha de 7 a 1 dos demais, é um relato sobre o Titanic que escrevi para o Jornal da Tarde em 1980.

Na semana passada, a semana da tragédia da sonda submarina Titan, que implodiu a 500 metros – a distância de duas quadras – dos destroços do Titanic, a 4 mil metros de profundidade, o texto teve 3.539 visualizações. Só na quinta-feira, 22/6, o dia em que foi confirmada a implosão da sonda Titan e a morte de todos os cinco ocupantes, foram 1.458 visualizações.

Claro: isso é titica de galinha diante dos números dos influenceres. Mas, diabo, ninguém que escreve para o 50 Anos é influencer, até porque os textos não são dedicados a idioters, e então tudo, aqui, é em escala pequena.

Mas, dentro da escala pequena, o texto sobre o Titanic é proporcionalmente um Everest, um Amazonas, um Júpiter. Um trem descomunal = um Titanic.

Se pegarmos o espaço de 10 anos, de 24/6/2013 até 24/6/2023, o texto “Como afundou o navio que nem Deus podia afundar” teve 51.656 visualizações, segundo Mary vê aqui no Google Analytics. O segundo texto meu mais lido ao longo deste mesmo período de dez anos teve 21.039 visualizações – um comentário sobre a autobiografia de Roger Vadim, o homem que comeu Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Jane Fonda. Ah, perdão, “comeu” é machista, misógino, porco-chauvinista, safado, não pode; viveu com, eu quis dizer.

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A culpa, claro, deve ser do Tio Google. Acontece alguma coisa que diga respeito ao Titanic, as pessoas vão ao Tio Google – e ele deve informar que  um sitezinho tem lá um texto com o título “Como afundou o navio que nem Deus podia afundar”.

Dei agora um google com “navio Titanic”, outro com “naufrágio Titanic”, e o meu site não apareceu nas primeiras quatro ou cinco páginas. Mas é claro que as pessoas vão parar no meu texto por causa do Google. Não há outra explicação.

Ou talvez haja. O título que mistura o Titanic com Deus talvez seja, em boa parte,  responsável pelo sucesso de público do texto.

De fato, parece, hoje, um título um tanto sensacionalista. Ou bastante.

Tirei o título do lead, da abertura do texto. Que, na verdade, é uma bela abertura – me orgulho dela até hoje. Começava assim a matéria que ocupava a primeira e a segunda  páginas do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde do dia 2 de agosto de 1980:

“O marinheiro não teve dúvidas. Quando aquela mulher – a senhora Alberta Cadwell, passageira da primeira classe, que acabara de embarcar no Titanic no porto inglês de Southamptom – perguntou se era verdade que o navio não podia mesmo afundar, ele respondeu:

– Minha senhora, nem Deus poderia afundar esse navio.”

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Ah, vai, meu… Essa é uma boa abertura de matéria, um bom lead. Pega um detalhe importante, fascinante mesmo, do tema que será abordado, e com isso tenta fisgar o leitor, fazer com que ele tenha interesse em prosseguir a leitura.

O tema deste texto aqui, este de agora, é basicamente o Titanic, mas não só, é também a minha relação com o Titanic, e este texto não é uma reportagem jornalística, e sim um suelto, e então me sinto à vontade para me sueltar e tergiversar um pouquinho sobre o lead. Um gênio do jornalismo norte-americano, estou com preguiça de pesquisar quem foi ele, definiu que um texto jornalístico deveria começar respondendo às cinco perguntas básicas: quem, como, onde, quando, por quê. Lead, o primeiro parágrafo de uma notícia, é bom quando responde a essas perguntas básicas. No resto do texto, são apresentados os detalhes – mas o fundamental tem que estar ali.

Jornais de todo o mundo seguiram a regra inteligente, sensata, correta – mas aí veio o new journalism, aquela coisa que defendia que um texto jornalístico com um cuidado especial, um toquezinho beirando a boa literatura, era uma bela opção ao texto frio, duro, do jornalismo diário. E dá-lhe Tom Wolfe, e Truman Capote, e Gay Talese. E aí o Jornal da Tarde, surgido em 1966, quando o dinheiro insistia em entrar no prédio do Estadão na esquina de Major Quedinho com Martins Fontes, mesmo que tentassem fechar todas as portas, abriu a revolução: abaixo o lead tradicional, viva o novo lead, o que fisga o leitor com um detalhe interessante!

E aí eu fiz aquela abertura lá, do marinheiro que diz para a passageira que nem Deus poderia afundar o navio.

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Impressionante: eu me lembro de quando escrevi meu texto de duas páginas do JT sobre o Titanic.

Por que será que alguns pequenos detalhes ficam na memória da gente?

Me lembro de ter escrito esses primeiros parágrafos do texto, na minha Olivetti, no escritório do apartamento da Ministro de Godoy, 860, voltado para a Avenida Sumaré (e para a SQP logo ali, cem metros abaixo na João Ramalho, onde minha filha e minha neta iriam morar), e de ter ficado olhando a vista, pensando em por onde eu iria após essa abertura. E aí me ocorreu o que me pareceu uma bela idéia, e fui pra Olivetti e tasquei:

“O iceberg tinha 30 metros de altura. Trinta metros para fora da água, e os icebergs escondem sob a água oito vezes o tamanho que expõem à superfície.

“O iceberg tinha 30 metros de altura. O rombo que ele deixou no casco direito do navio que nem Deus poderia afundar tinha 90 metros de comprimento. Noventa. A altura de um edifício de 25 andares. Quase a distância entre as duas traves de um campo de futebol.

“Um Morumbi de água gelada entrava a cada segundo nos compartimentos inferiores do Titanic.

“A senhora Cadwell sobreviveu; 1.502 pessoas morreram. Foi – e ainda é – a maior tragédia que já aconteceu no mar, em toda a História. A maior tragédia que já aconteceu com qualquer meio de transporte. E era, sobretudo, uma tragédia impossível de acontecer.”

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Ah, meu… Quem gosta de escrever, quem vive de escrever, tem algumas felicidades. Acho que uma das boas frases que escrevi na vida foi esta “Um Morumbi de água gelada entrava a cada segundo nos compartimentos inferiores do Titanic”.

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Seria fundamental dizer por que, raios, o Jornal da Tarde dedicou em 1980 duas páginas a um relato sobre o que era o Titanic, como, onde, quando e por que ele afundou em 1912. Em um texto jornalístico, seria fundamental – mas isto aqui é um suelto, um texto que não tem responsabilidade nem obrigação alguma.

E nem preciso contar isso, porque já contei tudo direitinho, em um texto aqui neste site, ao qual dei o título de “Recontando o Titanic, 17 anos antes de Titanic”.

O que eu queria mesmo dizer, acho, é que fico surpreso com as pessoas, com as reações das pessoas aos fatos.

Há quem demonstre imensa dificuldade de compreender o mundo, como a pessoa que enviou para o site, um dia depois da explosão do Titan, este comentário:

“Que todas as crianças desta tragédia esteja em paz com Deus, lamentavelmente a vida desses pequenos inocentes acabaram sendo ceifadas por ações que foram recusadas a serem cumpridas, tudo isso pela ganância e heroismos banais do homem.”

É triste – mas não é, nem de longe, o pior.

Houve um monte de gente que reagiu à tragédia do Titan com sarcasmo, ironia, quando não alegria pura e simples: ah, morreram uns milionários, que maravilha!

Não que esse tipo de coisa seja novidade. No 9 de novembro de 2001, houve muita gente que comemorou a morte de centenas de pessoas porque foi uma vitória sobre o Imperialismo, o Capitalismo, o Grande Satã.

Não é que a imbecilidade, a absoluta falta de empatia, de sentimento humano sejam propriamente novidade.

Mas é sempre muito chocante constatar isso.

Fica realmente parecendo que a humanidade é uma invenção que não deu certo.

25/6/2023

Um comentário para “O fenômeno Titanic e a pequenez”

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