Na economia, o governo Lula 3 parece estar em acelerada marcha a ré rumo ao passado. Rumo a algo parecido com os tenebrosos tempos de Dilma 2, em que Guido Mantega propunha a “nova matriz econômica” – o “nova” aí indicando aquelas idéias de 1917, do Estado todo-poderoso.
“Lula nunca foi mais petista do que está sendo neste seu terceiro mandato presidencial”, resumiu Merval Pereira, em artigo no Globo em 19/2, “Lula simulou uma candidatura de união nacional para ganhar a eleição, mas governa com o PT, e tenta ampliar sua base congressual atraindo bolsonaristas que vivem das burras do Estado, seja de que governo for. Foi assim que aconteceram o mensalão e o petrolão, que agora o PT tenta apagar da história. (…) A condução econômica deixa a desejar com a perspectiva dos mesmos erros já cometidos nos governos petistas anteriores, a começar do segundo mandato de Lula, terminando literalmente com a reeleição de Dilma. Em vez de rever os equívocos, Lula se preocupa em reabilitar a ex-presidente, e reescrever a história do país: Dilma não sofreu um impeachment, mas um golpe político. Não houve corrupção, houve uma narrativa falsa para prejudicar o PT.”
Ojeriza às privatizações. Promessas de fazer o BNDES financiar obras nos países vizinhos e “amigos”, ou seja, de esquerda. Ofensiva contra o Banco Central que mal esconde a tese de que uma inflaçãozinha maior não faz mal nenhum, e deixem o governo se endividar à vontade, porque governar é mesmo gastar com política social.
O pensamento vivo da dupla de gênios da raça Dilma & Mantega cada vez mais presente – e o comissariado petistas trabalhando contra todas as posições mais sensatas defendidas por Fernando Haddad no Ministério da Fazenda. (Com licença de Elio Gaspari para o uso do termo “comissariado”, que ele adora…)
E, como cereja desse bolo azedo, o governo Lula 3 anuncia que vai subsidiar quem fabricar semicondutores – medida que foi testada e desaprovada, malograda, provada como canoa furada.
Mas não é só. O governo Lula 3 promete que vem aí o trem-bala! Meu, o trem-bala! Aquele lá que a imaginação tresloucada dos comissários petistas começou a bolar em 2004, no governo Lula 1, e que estaria nos trilhos, segundo anunciado em 2008, durante a Copa do Mundo de 2014! Aquele que jamais teve projeto de engenharia nem demonstração de demanda, nem de viabilidade técnica, econômica, ambiental nem coisa alguma!
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O Brasil vai ter eternamente uma dívida para com o jornalista Elio Gaspari. Principalmente, é claro, pelo seu trabalho de escavar tudo quanto é arquivo e produzir os cinco volumes sobre a ditadura militar de 1964-1985. Mas também, ouso dizer, pelo seu brilhante texto historiando tudo sobre o sonho petista do trem-bala, publicado no Globo e na Folha de S. Paulo do domingo, 26/2.
Esse texto precisa ser divulgado tanto quanto for possível.
Faço minha humilde, pequenina parte, republicando aqui o excelente, imprescindível artigo de Gaspari. Como é longo, ele vai logo após a íntegra do ótimo editorial do Globo desta segunda-feira, 27/2, sobre a loucura de repetir a experiência fracassada de dar subsídios para a produção aqui de semicondutores.
Esta é a quarta compilação da série “O maior inimigo do governo é Lula”. (Sérgio Vaz)
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Lula repete erros na política para semicondutores
Editorial, O Globo, 27/2/2023
Não é a primeira vez que o Brasil lança uma política para atrair indústrias, tampouco a primeira em que Luiz Inácio Lula da Silva assina na Presidência um plano para incentivar fabricantes de semicondutores. A julgar pela experiência anterior, há motivo para ceticismo.
É verdade que a pandemia e a guerra na Ucrânia criaram dificuldades nas cadeias globais de suprimento de componentes eletrônicos, levando vários países a investir na produção interna de semicondutores para reduzir a dependência externa. Só no Brasil, a falta de chips impediu a fabricação de 370 mil veículos em 2021, 250 mil no ano passado, e mais 113 mil deixarão de ser entregues às revendedoras neste ano.
Mas hoje há até excesso na oferta de chips. Sob essa categoria genérica, são classificados itens de várias naturezas. Nem todo “chip” representa o avanço tecnológico que fascina os mais afoitos. A fatia mais relevante e lucrativa do mercado global é hoje dominada por Taiwan, Coreia do Sul e Japão. Estados Unidos e Europa enfrentam dificuldades para desafiá-los. O Brasil perdeu a oportunidade de desenvolver a produção local nos anos 1990, quando o ambiente hostil levou a Intel a preferir instalar uma fábrica na Costa Rica.
Desde então, a iniciativa de fabricar semicondutores por aqui se resumiu ao fracasso do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal criada em 2008 que consumiu R$ 800 milhões do governo, sempre trabalhou com tecnologia ultrapassada e jamais conquistou relevância nem no mercado interno. Os chips lá produzidos são triviais perto do que fabricam centros avançados e do que a indústria exige. A liquidação do Ceitec estava definida, mas o governo Lula, num arroubo nacionalista, decidiu suspendê-la.
Repete-se uma história conhecida no Brasil. Na ditadura militar, o presidente Ernesto Geisel quis reduzir a dependência do Brasil de fabricantes externos de bens de capital e insumos básicos. Para isso, instituiu “reserva de mercado” para atrair investimentos em novas fábricas. Tarifas aduaneiras garantiam que as empresas que aderissem ao programa de substituição de importações não teriam concorrência. Os bilhões transferidos em subsídios não tiveram o retorno esperado. O protecionismo gerou indústrias ineficientes e, mais uma vez, o contribuinte e o consumidor pagaram a conta. A experiência com outra “reserva de mercado”, no setor de informática, também foi pedagógica. Para não falar nas plataformas de petróleo e demais fetiches do nacional-desenvolvimentismo.
Lula deveria saber que não basta a vontade do presidente para criar um setor competitivo. Para o Brasil adquirir relevância em mercados de alta tecnologia como os semicondutores, precisa primeiro investir em conhecimento, em mão de obra qualificada e na integração às cadeias globais de suprimento. Sem protecionismo. Foi o roteiro seguido pelos maiores êxitos tecnológicos do país, Embrapa e Embraer.
Em vez disso, o Planalto criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis), por onde fluirá o crédito subsidiado. O enredo lembra outras siglas como Embramec, Fibase ou Ibrasa, subsidiárias do BNDES, depois extintas, que canalizaram incentivos aos pretendentes a livrar o Brasil de suas importações. Nunca deu certo. Por ironia, foi o agronegócio com capital privado abundante e tecnologia de ponta que pagou a conta desses desvarios.
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Lembra do Trem-Bala? Ele voltou
Por Elio Gaspari, O Globo e Folha de S. Paulo, 26/2/2023
Com jeito de quem não quer nada, na quarta-feira a Agência Nacional de Transportes Terrestres divulgou sua Deliberação nº 47, com três artigos. Outorgou à empresa TAV Brasil, constituída em fevereiro de 2021 com capital de R$ 100 mil, autorização para “a construção e exploração de estrada de ferro entre São Paulo e o Rio de Janeiro pelo prazo de 99 anos”.
Ganha um lugar na viagem inaugural desse trem quem conseguir explicar o que essa autorização significa, pois faltam o capital, o projeto de engenharia e a demonstração da demanda.
É o velho Trem-Bala que ressuscita. Pelo que se promete, em junho de 2032 ele ligará as duas cidades em 90 minutos. A autorização da ANTT custou-lhe uma folha de papel. Esse trem custaria algo como R$ 50 bilhões, cerca de US$ 10 bilhões.
Sonhar é grátis. Lula já disse que pretende reativar os estaleiros do Rio. Seria o quarto polo naval que sua geração financia, coisa inédita na história das navegações. Agora reaparece o Trem-Bala. Ele foi um sonho do consulado petista, acabou em pesadelo e só serviu para produzir uma empresa estatal.
Antes que se dê outro passo com o Trem Bala 2.0, convém revisitar o que aconteceu com o primeiro projeto.
Em 2004, durante o primeiro mandato de Lula, foi constituído um Grupo de Trabalho para estudar a “ligação ferroviária por trem de alta velocidade entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro”. Seu coordenador era José Francisco das Neves, o “Doutor Juquinha”, presidente da estatal Valec — Engenharia, Construções e Ferrovias S.A..
Os doutores visitaram fábricas da Itália e da Alemanha e, em abril de 2005, o grupo de trabalho recomendou o projeto da italiana Italplan. O Trem-Bala ligaria o Rio a São Paulo em 88 minutos, sem paradas, transportando cerca de 90 mil passageiros por dia. A obra levaria sete anos, e a concessão duraria outros 42.
A conta ficaria em US$ 9 bilhões, sem que a Viúva tivesse que botar um centavo. (Em 2004, o dólar estava a R$ 3)
Um curioso intrigou-se com o fato de que o trem iria do Rio a São Paulo sem qualquer parada. Todos os outros trens de alta velocidade param no caminho.
O Doutor Juquinha disse-lhe que essa era a proposta dos italianos e que não havia motivo para preocupação, pois a ministra Dilma Rousseff havia incluído o Trem-Bala no Programa de Aceleração do Crescimento, o falecido PAC. Qualquer dúvida, os italianos esclareceriam. Procurados os italianos, deu-se o seguinte diálogo:
Por que o trem vai do Rio a São Paulo sem paradas?
Porque pediram um projeto sem paradas.
O TCU parou o trem
Em 2007, o BNDES e o Tribunal de Contas da União (TCU) mastigaram as contas do projeto da Italplan. Saltou aos olhos que o Trem-Bala precisaria de subsídio. Além disso, sua malha começou a espichar indo até Campinas. Espichou também o custo, subindo para US$ 11 bilhões.
Em abril de 2008, Lula anunciou que a licitação do trem aconteceria em outubro. Ele estaria nos trilhos durante a Copa do Mundo de 2014 com oito paradas. Não houve a licitação, mas o custo estimado pulou para US$ 15 bilhões. Tudo isso, sem que houvesse um projeto de engenharia, numa obra que teria 16 quilômetros de túneis.
Em 2010 (ano eleitoral), o assunto estava no Tribunal de Contas e lá percebeu-se que a estimativa de demanda (e da renda) havia sido grosseiramente manipulada. O TCU freou o projeto por algum tempo, e os italianos foram mandados passear.
Candidato ao governo de São Paulo, o petista Aloizio Mercadante prometia trabalhar para que o trem fosse também a Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto e Rio Preto. Nessa campanha eleitoral, Lula comparou a audácia da obra à da construção da Torre Eiffel, em Paris. O trem só deveria rodar em 2017, mas em 2010 seu projeto produziu sua estatal, a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade, Etav. Durante a campanha, o Trem-Bala foi uma cereja de bolo. Chegou-se a anunciar que ele poderia ir a Curitiba.
Passada a eleição, adiou-se a licitação da obra. Consórcios de China, França, Coreia e Espanha, que teriam interesse na obra, caíram fora. (Alguns, como o coreano, podem ter se reciclado.)
Um grande empresário nacional ironizava: “Se o empreiteiro é o sujeito que convenceu o faraó a empilhar aquelas pedras no deserto, com esse trem o faraó (ou faraoa) quer fazer a pirâmide, mas os empreiteiros não querem.” O leilão foi adiado três vezes e nunca aconteceu.
Em setembro de 2011, a ANTT informou que os estudos de engenharia demorariam pelo menos um ano. A essa altura o Trem-Bala já havia consumido R$ 63,5 milhões, e o custo da obra estava estimado em US$ 20,1 bilhões. (Em 2005 falava-se de US$ 9 bilhões.)
Em 2014, Dilma Rousseff admitiu que o Trem-Bala havia deixado de ser prioridade.
Litígio na Itália e Juquinha na cadeia
A única coisa que andou foi um litígio judicial aberto pela Italplan na Itália. A empresa, que em 2004 tinha a preferência do grupo de trabalho, processou o governo brasileiro e em março de 2016 pedia na Justiça cerca de R$ 1 bilhão por serviços prestados.
Em julho de 2012, por conta de outras malfeitorias praticadas na Valec, o “Doutor Juquinha” foi preso. Dormiu poucas noites na cana. Anos depois, ralou uma condução coercitiva.
Andou também a estatal Etav. Transformou-se na Empresa de Planejamento e Logística (EPL). Em 2017, empregava 143 pessoas e custava R$ 99 milhões anuais. Já a Valec tinha 1.027. Ambas sobrevivem, fundidas na Infra S.A..
Cinco personagens em busca de um trem
Lula comparou as críticas ao projeto do Trem-Bala, nascido em 2004, às que foram feitas à construção da Torre Eiffel. A torre ficou pronta em menos de dois anos.
O ministro dos Transportes, Renan Filho, informa que a autorização dada pela ANTT para a construção e operação por 99 anos do Trem-Bala de Lula 3.0 é um projeto inteiramente privado da TAV Brasil. A autorização da ANTT é inteiramente pública. Renan tinha 24 anos e acabara de se formar em economia quando o grupo de trabalho do “Doutor Juquinha” dizia a mesma coisa.
Geraldo Alckmin, atual vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, conhece a história do Trem-Bala desde 2009, quando era secretário de Planejamento do governo de São Paulo. Em 2010, como governador eleito, ele sugeria que o trem não passasse pelos aeroportos de Guarulhos e Viracopos, mas que eles fossem servidos por duas outras ferrovias expressas.
Aloizio Mercadante, defensor da extensão da malha do Trem-Bala para Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto e Rio Preto, é o atual presidente do BNDES.
Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, foi um implacável diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) em 2011, durante a “faxina ética” que Dilma Rousseff fez no setor de transportes do seu governo. Conhece a história da Valec e do Trem-Bala de cor e salteado.
27/2/2023
Esta é a quarta compilação da série “O maior inimigo do governo é Lula”.
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