Parte 2 – A Emancipação

A era da Caloi 10. Cabe uma breve explicação: Nesse momento eu tinha em torno de 13 ou 14 anos e o surgimento dessa bicicleta de 10 marchas foi uma quebra de paradigmas que só se compara à queima dos sutiãs nos anos 60.

Esse composto de ferro, alumínio e inúmeras engrenagens dava autonomia a você para atravessar a cidade e fazer trajetos inimagináveis com uma bicicleta normal.

Se dependesse de mim, nunca mais pisaria em um ônibus, iria sempre de Caloi 10.

A única preocupação era onde guardá-la. Afinal, ninguém conseguia imaginar a voltar àquela vida sem esse veículo.

Nesse momento, os felizes proprietários desse vigoroso transporte perdiam a noção de tudo, incluindo o tempo, a distância e suas condições físicas. Fazíamos programas totalmente fora do propósito. À noite, o elevado minhocão fechava para automóveis. Me pergunte onde fazíamos corridas insanas de Caloi 10. Lá mesmo.

Na volta, todos moídos, pulávamos o muro do Balneário do Ipiranga, passávamos as bikes pelo muro e tomávamos um refrescante banho de piscina gelada apenas com a luz das estrelas – afinal, ali só tinha água e cloro, não havia nenhum vigia.

Depois nos secávamos ao vento no peito sem camisa antes de chegar em casa. Largava a bike na garagem e entrava de fininho para evitar alarde, não tomava banho, dormia com cloro ressecado no corpo. Arrisco dizer que, por conta de tantos cuidados dedicados à saúde, seja esse o segredo da minha beleza.

Falando em beleza, aqui perto tem uma rua com umas 800 clínicas de beleza e harmonização; utilizam maquininhas com nomes futurísticos como Inceptor T-300, Sculptor 9000D. Elas reduzem o calor, acessam partes com pouca irrigação sanguínea, enrijecem os lóbulos das orelhas, afinam o nariz, distribuem o peso das panturrilhas, acessam a alma e a convencem a mudá-lo para mais belo por fora. Por dentro não importa.

Mas não é nenhum milagre, são necessárias ao menos seis sessões! Depois é só manter passando oleozinho morno na barriga após as três refeições.

Voltando aos meus cuidados, minha mãe falava: “Esse seu travesseiro tem cheiro de piscina”. Sério, mãe? Mas como eu ia ao clube quase diariamente, passava batido.

Um detalhe aos sobreviventes: nunca usamos capacete, nada que absorvesse o impacto exceto as mãos, os dentes e os joelhos.

Hoje vejo gente saindo para pedalar a 2 km por hora, na ciclofaixa do domingo, usando capacete, luvas, óculos de proteção, protetor solar, garrafinha de água, contador Geiger, GPS – só faltam a botinha ortopédica e a gaze na lente dos óculos. Verdadeiro bicho criado em zoológico.

Com todo respeito, o cara gasta uma grana com plano de saúde e não aproveita! Oxi, qual a graça em sair sem correr o risco de voltar sem dentes ou com uma fratura exposta? É uma chance de conhecer gente interessante. Um médico, uma enfermeira, o motorista da ambulância, gente com bastante conteúdo. Afinal, nessa fase da vida a gente tem que ter histórias para contar. O que eu iria contar para as meninas? Eu não conseguiria audiência falando sobre a Ilha dos Guilligans. Como diria Machado de Assis ou Castro Alves: Um homem sem barriga é um homem sem história!

Ir ao Ibirapuera descendo como doidos a Avenida Sena Madureira para ver os motoqueiros fazerem “zerinhos” em frente à marquise. Passeios noturnos como passar na Sorveteria Caramba no Paraíso ou Avenida Paulista, era corriqueiro, metade do caminho era subida e metade descida. Em outras palavras, aqui se faz, aqui se paga!

Quando batia um cansaço bravo tinha o plano Z: optávamos voltar pela Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Havia uma estratégia, no ponto que a subida virava uma parede, os ônibus mudavam de marcha e quase paravam nessa troca. Nesse momento surgíamos como zumbis, agarrávamos a alça da porta traseira e éramos puxados até a Alameda Santos. Às vezes dividíamos o grupo em dois a três ônibus ou apenas segurávamos no selim do que estava agarrado à alça, fazendo um trenzinho. Dali em diante só tinha planos e descidas até em casa.

Imagine que uma vez fomos até São Bernardo encontrar um conhecido, para lá ainda rodar com ele. Veja a falta de noção. O cara morava no bairro Baeta Neves. Da casa dele fomos ao Paço Municipal e depois encontrar uma moçada em uma escola. Programa de elefante. Hoje me pergunto para quê.

Na volta, estávamos morrendo com aquelas subidas da Via Anchieta sendo pulverizados com o diesel queimado dos caminhões que passavam gemendo na subida. Haja pulmões!

Sai 7h da manhã e cheguei em casa 7h da noite podre e desidratado. Achei que nem o x-salada do Seu Oswaldo e uma Fanta uva me trariam a saúde de volta.

Para quem não conheceu o Seu Oswaldo (sim, ele é famoso), já falecido, era dono da lanchonete que existe há uns 60 anos no Ipiranga e que o carro-chefe é o x-salada que leva uma maionese criada por ele e um molho especial de tomate ao invés de rodelas. O bairro todo foi alimentado com essa gostosura. Quando alguém ficava doente e inapetente, era de praxe, busca um x-salada no Seu Oswaldo que ele come. Valia super a pena ficar doente. Trago melhores recordações de quando ficava doente do que das farras em Ibiza. Sem essa de canja ou purezinho. Isso não levanta ninguém.

Uma vez eu estava lá e Seu Oswaldo, que era um senhor careca de aparência meio truculenta, não muito sorridente, acho que ele nunca chorou, nem quando atiraram na mãe do Bambi.

Ele perguntou do meu primo, que havia sofrido um tremendo acidente de carro e esfacelou o crânio. Respondi: “Tá melhorzinho, já lembra o nome da mãe e reconheceu o Chacrinha na TV”.

Ele preparou um X-Salada para viagem, me entregou e disse: “Esse é pro Luizinho”. Aquele sanduba era tão milagroso que fazia cego falar, manco ouvir e assim por em diante…Muita gentiliza dele, achou que o salvaria. Depois me lembrei que o acidente ocorreu na volta de uma lanchonete concorrente na Avenida Lins de Vasconcelos. Esse segredo só divido com vocês. Êta mundinho ordinário!

O chapeiro merece uma descrição; ele usava uns óculos grossos e ficava tentando desgrudar as fatias de queijo com a fuça quase colada ao monte, mas não tirava o olho da tevezinha de 13 polegadas por nada. No maior estilo “frita o peixe e olha o gato”. O nome dele era Assis. Eu que nunca perdia uma piada logo inventei que o nome se dava porque ele ficava Assis-tindo TV o dia inteiro.

Voltando às programações com a Caloi 10, sábado à tarde, antes do programa noturno, diga-se: A Era Disco ou outras festinhas esquisitas em salões ou de garagem, era dia de pedalar até o Pacaembu para ver os jogos grátis da 8a divisão. Deixávamos as bikes na casa de uma senhora em frente ao estádio que sempre guardava para a gente. Até hoje passo ali de carro e vejo a tal casa.

Hoje se eu tocar a campainha na casa de alguém com essa proposta de guardar minha bicicleta para eu ver o jogo, ou o cara abre com um rifle na mão, ou se guardar as bikes não devolve mais, ou qualquer outra truculência. São os novos tempos de inclusão. Estão incluindo balas em todo mundo. Hêhê.

Outro lugar fabuloso era a construção do viaduto da Rua Santa Cruz. Lembrava Portugal, onde ninguém anda de skate porque só tem subidas e também não tem ruas sem saída. Você sai por onde entrou.

Íamos de Caloi 10 levando o skate amochilado nas costas.

Depois do horário comercial ou finais de semana era o lugar ideal para uma sessão de skate.

Cimento lisinho, montávamos rampas com os madeirites rosa da obra. Aquilo era uma fauna, só tinha gente cabeluda e bacana que descolava boas festas, tipo a turma do Andy Warhol.

O único probleminha é que a obra do viaduto estava pela metade e a partir de um certo ponto, se você não brecasse o skate na saída da rampa, você voava lá de cima. Mas isso era apenas um detalhezinho besta perto do potencial de diversão daquele lugar. Ninguém morreu, mas houve perda de alguns skates que escaparam para a avenida e o rio.

Para finalizar, um detalhe: Levei horas para digitar esse texto, pois erro muito e volto para corrigir. Fiz uma avaliação pessoal e concluí que não sou mal datilógrafo, afinal sou graduado, estudei na Escola Clóvis Beviláqua.

Meu problema é a má pontaria. Quando ataco uma letra acerto a do lado.

Enfim, não dá para ter o sol e a lua. Fazer o quê?

Se eu tivesse nascido na família real eu teria passado minha infância atirando em gansos, teria adquirido ótima pontaria, mas não teria vivido esse “conto de fadas” que acabo de descrever.

Dedico esses causos verídicos à minha Caloi 10 e aos meus amigos que sobreviveram até aqui, alguns já se foram bem cedo e participaram de parte dessa jornada, incluindo meu primo (o da coleção de marcas de cigarro).

E não poderia esquecer de agradecer aos ansiosos leitores que leram a primeira parte desse romance e aguardavam esse gran finale.

Como dizia Frank Sinatra, só se vive uma vez, e quem precisa de uma segunda vez, ainda mais do jeito que vivi?

Estou contigo, Frank!

Desejo a todos ótimo Natal e que 2023 venha com muita saúde e pouca inflação.

Segura o Baião!!!

Dezembro de 2022

Para ler a Parte 1 – O Contágio, clique aqui.

10 Comentários para “Parte 2 – A Emancipação”

  1. Felicitações Fábio
    Que tal história de sobrevivência.
    Super com Caloi10.

  2. Fabio o Luizinho comeu o Xsalada ou não?Bom ele não está até hoje….sensacional bjo….

  3. Muito bom, como sempre!!!
    Quantas lembranças… e elas nos garantem muitas risadas!

    Feliz Natal e Iluminado 2023!

  4. Mais um excelente texto, Fabião! Estava realmente ansioso pelo desfecho, valeu esperar! Em tempo, acho o X-Salada do seu Oswaldo muito bom até hoje!
    Obrigado e uma abração

  5. Sensacional Fabio,
    Que infância maravilhosa tivemos hein meu amigo .
    Abraços

  6. Bela leitura Fabio,
    Que infância maravilhosa tivemos hein meu amigo .
    Abraços

  7. Grande Fábio! Impagável texto!
    Embora não tenha curtido uma Caloi 10, coko a sua, tive, e até hoje tenho, uma concorrente dessa “magrela”, como então as chamávamos: uma Monark Crescente, que tinha 10 marchas também!!
    Bons tempos!

  8. Adorooooo ler seus textos! Seu humor sempre foi e sempre será sua marca registrada! Nunca me animei a ter uma Caloi 10… não tenho altura pra isso… não conseguiria alcançar o chão na hora de descer…. Feliz Natal, Feliz Aniversário é que 2023 seja extraordinário! Beijoooo

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