Do Contágio à Emancipação

Aviso: Foi necessário dividir em dois episódios, para não sobrecarregar o sistema com tanta loucura.

Parte 1 – O Contágio

Quando a gente tem 9 ou 10 anos toda novidade aparenta ser bem mais interessante do que normalmente é, e a cada nova amizade nos contagiamos com algum vírus a que aparentemente estávamos imune. Calma aí, hold your horses, não vá morrer de curiosidade! Eu conto…

Nas férias do julho eu gostava de passar alguns dias na casa da minha querida tia Ivone. O maior motivo é que lá podia tudo. Além de preparar uma comida deliciosa ela era super relax conosco. Exemplo: – “Tia, posso pular da Golden Gate?” – “Claro pega um calção do Paulinho na terceira gaveta.” – “Tia, posso empinar pipa no telhado ao lado dos transformadores sentado na tampa da caixa d’água?” – “Tá, mas vai de boné, está muito sol.”

Brincávamos num tal “campinho” que hoje reconheço pelos programas de TV como típico local de desova de cadáveres, com direito a estupros e estrangulamentos corriqueiros. Hoje eu não entraria ali nem de colete à prova de balas e acompanhado do Charles Bronson. Porém havia o outro lado da preocupação: – “Cuidado, menino, você está suado, não toma leite gelado que dá embolia. Não pisa descalço nesse chão frio que entorta a boca. É isso aí… tem que se precaver.”

Em umas férias dessas fui contaminado pelo meu primo e seus amigos com o vírus de colecionar “marcas de cigarro”. Das tolices que eu fiz, suponho que essa esteja entre as maiores.

Era uma busca idiota e infinita em pontos de ônibus, bordéis, lixo de cinema, porta de bares, todos lugares possíveis onde havia o bom relacionamento entre o homem e o cigarro. Escarafunchando embalagens amassadas e avaliando qual estaria no estado menos deplorável. Um verdadeiro nojo.

Avalio que esse “esporte” só era possível por aqui porque o brasileiro tem a rua como seu lixo particular, suponho que só a mãe ele não amassa e joga na calçada.

Um belo dia, passando em frente ao mercado do Ipiranga, vi um senhor vendendo bilhetes de loteria em uma cadeira de rodas com as pernas amputadas. Notei ele sacando do bolso um maço de embalagem azul celeste e curto. Fiquei de orelhas em pé, fui até ele e perguntei: – “Senhor, que cigarro é esse?” Ele respondeu: –  “Crássicos”. – “Onde o senhor compra?” – “Lá dentro do mercado tem uma banca só de cigarros.” Agradeci e segui em frente; quando cheguei na banca vi o colorido de marcas que nunca soube que existissem.

Os maços custavam uma miséria e eu logo arquitetei: vou comprar umas 10 raridades dessas, retirar o encarte novinho e lisinho e trocar por uns encartes gringos, que me faltavam com outros colecionadores tontos como eu.

Mas o que vou fazer com os 200 cigarros? Ring a Bell! Na saída perguntei a ele se aceitaria e fumaria outras marcas. Respondeu de bate-pronto: – “Claro, pode trazer Mexicano, Sultan, Macedônia, qualquer um desde que seja sem filtro eu fumo.” É… O tiozinho era exigente.

Quando lhe entreguei o monte de cigarros ele comentou: – “Hoje não vou gastar com cigarro, vou comer bolinhos de bacalhau no bar do Portuga.”

Após uma semana eu já havia negociado minhas preciosidades, o spread tinha sido excelente. Voltava lá regularmente para buscar novidades e entupir o tiozinho de cigarros e até pensei: vou ver se ele me dá um bilhete pelos cigarros, afinal nessa fase positiva da minha vida e com as estrelas alinhadas, talvez eu ganhe um prêmio e compre um Velotrol ou uma raquete Wilson T-3000.

Foi aí que percebi que eu poderia me tornar o Rockefeller do Ipiranga. Não só trocava pelos encartes que eu queria, como ainda recebia encomendas onde eu cobrava taxas escorchantes. Afinal, tinha produtos cobiçados nas mãos.

Como todo bom aspirante a mafioso, eu precisei me cercar de alguns cuidados básicos, como observar se não estava sendo seguido, não sair de casa no mesmo horário, não fazer o mesmo trajeto. E deixo uma dica: se encontrar uma turma empunhando tacos de beisebol, note se estão carregando bolas e luvas também; se for só o taco, comece a correr.

Um belo dia, ao sair da banca cheio de cigarros excêntricos não encontrei o bilheteiro, porém encontrei um amigo cujos pais tinham comércio ali e perguntei: – “Você viu aquele tiozinho que vende bilhetes?”

Abatido, me falou:  – “Ele morreu. Era meu avô.” – “Seu avô!!” – “Na verdade, ele me conhece desde pequeno e como eu não tive avô, ele me chamava de neto.”

Na hora, eu portando uma sacola cheia de maços já sem o encarte, exalando aquele odor úmido de fumo, não sabia se dava os pêsames ou pedia desculpas. Apenas comentei: “É… Puxa vida, ele fumava bastante, né?”

Me desapontei e desisti da coleção. Na falta de uma proposta melhor, troquei a minha coleção por um Nunchaku de madeira maciça, que me deixou parecendo um dálmata de tantos hematomas.

Até hoje penso o que teria acontecido, se foi overdose de “Crássicos” ou se engasgou com o bolinho de bacalhau do Portuga. RIP!

Penso bastante também no atendente da banca que vendia entre 10 e 20 maços de cigarros variados da modalidade “estoura peito” a uma criança.

C’est la vie.

Nota do Administrador: Continua algum dia.

 

 

15 Comentários para “Do Contágio à Emancipação”

  1. Suas crônicas trazem lindas recordações. São muito esperadas, como um novo episódio de nossa série favorita. Parabéns, e não nos abandone.

  2. Sensacional meu amigo, e era o máximo colecionar embalagens de cigarro:
    Agora posso pular da Golden Gate hahahaha…
    Abraços

  3. realmente, quem venderia cigarros para uma criança e digo mais, poderia ter sido preso com tantos cigarros e até explicar que nunca fumou, seria difícil.

  4. Muito bom! Como sempre, dou muitas risadas com suas histórias.
    E como é bom lembrar de pessoas queridas que marcaram nossas vidas!

  5. Muito bem elaborado . Um dos melhores que você já publicou.
    Faltou apenas lembrar a forma de dobrar e segurar as embalagens dos cigarros como os cobradores dos bondes de antigamente.

  6. Fábio,me diverti muito com essa bela crônica!
    Eu tbm fui um destes moleques colecionadores de maços de cigarro.
    Me esborrachei de rir no parágrafo, em que vc descreveu a busca insana pelos maços.
    Grande abs

  7. Grande texto que me faz lembrar que, eu não só colecionava as carteiras de cigarros, como também, com minha turma, começamos a provar os “crivos” como mais tarde a malandragem chamava os cigarros.
    Dessa forma, lembro-me de ter provado os Negritos (com gosto de chocolate argh!); os Cônsul (com gosto de menta), obviamente sem que nossos pais soubessem!

  8. Domênico, o Mafioso! Nossa… como me divirto com suas crônicas! Sempre ri muito com vc e agora que o convívio é difícil, me divirto lendo suas crônicas. Parabéns!

  9. Rapaz e eu colecionei também capas de cigarros e tinha até álbum,era muito legal…apesar da nojeira que era mesmo…parabéns por mais esta pérola literária….

  10. Grande Fa, que alegria ler seu texto! Sempre rápido e divertidíssimo vc! Parabéns!

    Bjo, FeZacha.

  11. Amei Fábio !!

    Obrigada por lembrar minha mãe e meu irmão com tanto amor !!
    Pois é, sobrevivemos !

  12. Fábio, mais um texto sensacional, parabéns! Estas recordações que você nos traz, consegue nos transportar para um tempo distante mas muito importante termos vivido. Obrigado por dividir estas memórias, abração!

  13. Fabio, elogiar suas crônicas já se tornou muito repetitivo. A verdade é que as lemos torcendo para não se acabarem rápido porque além de prenderem nossa atenção nos faz vivermos também suas aventuras. Parabéns!!!

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