O Brasil devastado (2)

“A impressão que se tinha é de que não havia gestão e que tudo era decidido aleatoriamente.”

“Os dados dão a entender que o governo Bolsonaro aconteceu na Idade da Pedra, em que não havia palavras ou números.”

“Há documentos desaparecidos, há apagões de dados que sempre existiram em governos anteriores e há rombos financeiros inexplicáveis.”

“Simplesmente não existe registro de nada.”

“A verdade é que o governo Lula não tem como saber o que precisa ser feito com base nos indicadores porque eles não existem. A política pública terá que ser criada do zero.”

“Tudo terá que ser feito no feeling e, possivelmente, haverá muitos erros por culpa da falta de dados.”

“Desde que entrei na vida pública, nunca vi nada parecido.”

Esse conjunto de constatações do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin é seguramente uma das mais duras, incisivas, definitivas sínteses do que foi o desgoverno Jair Bolsonaro. Elas têm peso, relevância, merecem absoluto respeito: foram feitas por um político experiente como poucos, conhecido e reconhecido por seu caráter cuidadoso, calmo, contido, pouco dado a exageros, frases de efeito, bombásticas.

E ele falava com a vivência de coordenador dos grupos que fizeram a transição de governo, ou seja, que se reuniram com os atuais ministros ou seus representantes para recolher deles os dados sobre a situação de cada área.

“Os dados dão a entender que o governo Bolsonaro aconteceu na Idade da Pedra, em que não havia palavras ou números.”

“Desde que entrei na vida pública, nunca vi nada parecido.”

É bom lembrar que faz tempo que Alckmin entrou na vida pública. Foi eleito vereador de Pindamonhangaba, sua cidade natal, em 1972, quando o general Garrastazu Médici era presidente da República, e Jair Bolsonaro ainda nem tinha começado a planejar explodir quartéis das Forças Armadas como forma de reclamar dos baixos soldos dos militares. Sequer militar era ainda – só entraria na Escola de Cadete de Campinas em março de 1973.

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É necessário registrar: as frases acima do vice-presidente eleito não foram ditas diretamente por ele a um repórter, e sim a amigos, pessoas próximas, e reproduzidas por pelo menos duas delas ao jornalista Daniel Cesar, do site Último Segundo, do IG. Podem não ser a transcrição literal do que disse o ex-governador paulista, mas seguramente expressam sua avaliação após o trabalho da equipe de transição – tanto que as frases têm sido reproduzidas desde o dia da publicação no Último Segundo, a segunda-feira, 12/12, sem terem tido qualquer tipo de desmentido.

É fascinante – e irônico – que essa avalição forte, dura, avassaladora do desgoverno Bolsonaro tenha vindo de um político tão dócil, tão suave, a ponto de ter ganhado o apelido de Picolé de Chuchu.

“Conciliador até a raiz dos cabelos que agora já lhe faltam, o médico Geraldo Alkmin não falou para puxar briga com seu paciente, mas para fazer uma constatação do estado de saúde em que encontrou o governo terminal”, escreveu o jornalista Nelson Merlin, aqui mesmo neste + de 50 Anos de Textos. “Foi didático, sereno, objetivo como um profissional da medicina deve ser ao dar tanto as boas como as más notícias. De boas, no caso, não tem nenhuma. Todas as políticas públicas trabalhosamente construídas desde o fim da ditadura de 64-84 pelos governos democráticos que se sucederam estão em escombros. Órgãos vitais para o desenvolvimento econômico sustentável, a proteção de nosso patrimônio natural e cultural e a participação da sociedade nas grandes decisões nacionais viraram pó. Faltam documentos, lançamentos, referências. A inflação voltou, os preços dispararam e o emprego virou bico – acrescento. O estado é de falência múltipla de órgãos.”

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Felizmente, a imprensa livre e independente – assim como a própria democracia – sobreviveu à destruição ampla, geral e irrestrita promovida pelo desgoverno Bolsonaro. E assim temos tido análises que vão traçando o quadro lastimável deixado pelo tsunami que foram estes quatro últimos anos.

Eterno compilador, estou registrando aqui alguns dos bons textos que têm feito balanços sobre a devastação do Brasil. Como o editorial do dia 30/11 de O Estado de S. Paulo, que cravou, com clareza absluta:

“A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social.”

Também em editorial, em 2/12, O Globo demonstrou que “a alta no desmatamento no governo Bolsonaro é inequívoca – e intencional”.

“Jair Bolsonaro termina o governo tendo permitido que o desmatamento na Amazônia aumentasse quase 60% ante os quatro anos anteriores. Entra para a História como o presidente responsável pelo maior desastre ambiental na região desde 1988, quando começou o monitoramento por satélite.”

As íntegras vão abaixo:

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Os inimigos do Estado

Editorial, O Estado de S. Paulo, 30/11/2022

A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social.

Ainda na campanha, a apresentação do Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para garantir o piso do Auxílio Brasil. O gabinete de transição do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, tem sido alimentado com relatos diários sobre o caos generalizado que terá de enfrentar no que diz respeito ao provimento de serviços públicos essenciais.

Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a quase R$ 2 bilhões. Alegando tratar-se de informações reservadas, o Ministério da Saúde resiste ao pedido de informações dos integrantes do governo eleito sobre o estoque de medicamentos na rede pública, desde analgésicos a antirretrovirais para o tratamento de HIV. A pasta tampouco apresentou dados sobre a fila de pessoas em busca de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A equipe de transição recebeu a informação de que há 5 milhões de processos referentes a benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com análise atrasada. O jornal Valor mostrou que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) – filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente depois do segundo turno.

Há muitos outros casos a confirmarem o quadro, e talvez não seja por acaso que o gabinete de transição tenha reunido mais de 400 pessoas – a imensa maioria trabalhando sem remuneração – dispostas a fazer um diagnóstico das urgências a serem enfrentadas em 2023. A substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.

Toda a prioridade do governo eleito tem sido dada à construção de acordos pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, solução escolhida para recompor a verba de programas prioritários do Orçamento de 2023. As informações reunidas pelo gabinete de transição revelam mais do que simples cortes de verbas e necessários remanejamentos orçamentários, mas uma profunda e generalizada desestruturação do Estado em suas mais diversas dimensões – em especial das raras políticas públicas que venciam todos os obstáculos até chegar efetivamente às famílias mais carentes.

“Quanto mais Estado, pior”, vaticinou o presidente, em uma entrevista que concedeu à revista Veja entre o primeiro e o segundo turno da eleição. Em vez de proporcionar mais foco, prioridade, eficiência e qualidade ao gasto público, o bolsonarismo apostou em uma sociedade quase feudal, em que cada um deve lutar pela sobrevivência literalmente com suas próprias armas. Diante dos péssimos resultados que o País colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social.

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Alta no desmatamento no governo Bolsonaro é inequívoca — e intencional

Editorial, O Globo, 2/12/2022

Jair Bolsonaro termina o governo tendo permitido que o desmatamento na Amazônia aumentasse quase 60% ante os quatro anos anteriores. Entra para a História como o presidente responsável pelo maior desastre ambiental na região desde 1988, quando começou o monitoramento por satélite.

Entre agosto de 2021 e julho de 2022, foram registrados 11.568 km2 de devastação, segundo o sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Houve, é verdade, uma redução em relação aos 13.038 km2 registrados nos 12 meses anteriores (primeira redução no desmatamento desde 2017). Mesmo assim, no ano anterior à posse de Bolsonaro, o desmatamento foi de 7.536 km2. A alta na gestão Bolsonaro é inequívoca — e foi intencional. Obteve êxito a política de deixar “passar a boiada” de grileiros, madeireiros e garimpeiros associados ao crime.

O resultado de 2022 surpreendeu os cientistas, porque o Deter, outro sistema do Inpe que monitora a Amazônia em tempo real, sinalizava expansão do desmatamento. O Prodes, porém, é mais sensível e preciso. A queda no desmatamento no último ano tem de ser celebrada — e explicada.

De acordo com o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador técnico do Observatório do Clima e chefe do MapBiomas, parte dela resulta de ações de órgãos estaduais de meio ambiente, parte das chuvas em Mato Grosso e Pará. Segundo o Ministério da Justiça, a Operação Guardiões do Bioma, de combate a queimadas, desmatamento e invasões, também ajudou a reduzir a destruição da floresta. O Ministério do Meio Ambiente, responsável pela área, não se pronunciou.

Pode-se entender a redução do desmatamento na Amazônia como um incidente até certo ponto fortuito na desastrosa política ambiental de Bolsonaro. Ele concluirá seu mandato com média de mais de 11 mil km2 de destruição por ano, enquanto os governos Dilma e Temer ficaram entre 5.500 km2 e 7.200 km2. O primeiro governo Lula foi recordista — 21.6 00 km2 de desmatamento em média —, mas foi também o que promoveu a maior queda, resultado da gestão Marina Silva no Meio Ambiente. No segundo governo Lula, a devastação já caíra para 9.800 km2 anuais.

O presidente eleito promete repetir as políticas que deram certo, com os aperfeiçoamentos exigidos pela situação calamitosa a que chegou a Amazônia. Na COP27, no Egito, Lula pediu ajuda aos países ricos para reduzir a níveis administráveis o desmatamento na região. Argumentou que o Estado brasileiro precisa retomar o controle da Amazônia e que isso tem um custo.

Lula tem razão. Chegou a hora de governantes do Hemisfério Norte, com razão críticos de Bolsonaro pelo estrago ambiental, cederem recursos e tecnologia para a retomada da Amazônia. Lula lançou a proposta de ampliar o Fundo Amazônia — hoje restrito a Noruega e Alemanha —, cujo objetivo é criar novas fontes de renda para os habitantes da floresta não precisarem derrubá-la para sobreviver. Ficaram R$ 3,2 bilhões congelados no fundo. Será preciso muito mais.

16/12/2022

Da mesma série: O desgoverno Bolsonaro não foi apenas incompetente: “Houve uma decisão política de destruir”.

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