O Filhote. Capítulos XIII a XV

CAPÍTULO XIII – “DODÔ”, O MAQUINISTA ATROPELADOR

Entre a cabeceira da ponte e a base concreto o grupo seguira reunido, especulando, e a conversa ia solta, recheada de indagações, até que alguém falou:

— Fioti di onça num vagueia sozinho.

“Dodô”, o maquinista, confirmou com a rouquidão da sua voz:

— Era mãe e dois fioti, juru por tudu qui é sagrado. Foro visto por esse zóio qui a terra há di cumê. Tinha um fioti, inté, que parecia mermo jaguatirica. Num era pintadinho cumu esse aí não – apontando o bichinho. Tinha era o corpo todo rajadinho.

“Mão-de-gancho” indagou, todo curioso:

— Cumu foi?

“Dodô” encostou seu corpo magro nas pedras negras de granito, coçou a testa com o polegar empurrando a aba do boné, e enquanto se preparava para a narrativa acendeu um “Fulgor”, soprando a primeira baforada num bando de borrachudos. Abriu as portas da lembrança e falou sem pressa, sabendo de antemão que cada palavra seria saboreada tal qual um gole de cachaça e repetida de boca em boca por toda a vila:

— A gente vinha desceno a reta de oio na entrada da ponti. “Querosene”, meu foguista, oceis conhece ele, enchia a fornaia pra fazê vapô pra manobra. Foi intão qui, durante o apito na boca da ponte, eu vi os gato entrá na frente da 171. Chamei “Querosene” aos berro a tempo di ele vê quano o limpa-trio lambeu um dos fioti e atirou a onça grande aterro abaixo.

“Mão” questionou:

— Num parô pra vê?

— Num paramo, qui eu num sô troxa di i fazenu assim sem mais nem menos pra recebê uma suspensão da pesada. Oceis num sabe como os home lá da chefia são carrasco. Num perdoa nada. O inspetô num aparpa, vive inganchano maquinista a treis por dois. Eu só breco meu trem si fô por motivo qui a gente num pudé evitá. Ou, intão, cuano é coisa di Deus.

Todas as vozes concordaram:

— É justo!

“Mão” voltou a apartear:

— Tinha mais onça, intão?

“Dodô” baforou o “Fulgor” já quase no toco, fumaça azulada cobrindo seu rosto moreno e barbado, e desafiou:

— Aposto um meis de ordenado. “Querosene” está lá na 171 pra num mi dexá menti.

“Mestre Cilão” deu seu palpite:

— Vai ver alongou pro triangulo das Três Pontes – referindo-se aos pontilhões onde ocorre a junção da ferrovia e da estrada ligando Guatapará e Rincão. A construção de metal fica ali já na altura da curva do Viana, onde o Mogi dobra para descer rumo ao poção, em frente ao barrancão, na dobra de 90 graus que faz antes de passar sob a ponte de ferro e mais embaixo sob as pontes de cimento.

“Mão” olhou rio acima e depois o aterro, que sumia de vista:

— Podi sê qui sim – depois voltou-se para o grupo:

— Quem leva u gato?

Alguém sugeriu:

— “Dodô” matô, “Dodô” leva.

Todas as vozes concordaram:

— É justo!

“Dodô” tragou a última baforada, atirou a bituca nas águas e ficou vendo-a ser levada pela correnteza. Despertou do pensamento e respondeu sério:

— Levo não, genti! É chegá u gato mais eu lá em casa e a patroa mi iscurraça com onça i tudo. Ela num suporta nem gatinho di meis, quanto mais essa coisa fidida aí – meneando a cabeça na direção da oncinha.

Todas as vozes concordaram:

— É justo!

“Mão” tencionou pedir, porém a timidez, vergonhosa até, não deixou. De repente, num estalo, encontrou a saída para alcançar seu desejo:

— “Dinho”!

O menino arregalou os olhinhos:

— Dêxa eu levá, “Mão”?

— Si eles dexá… – fez um ar de humildade, apontando os demais com o olhar. Queria mesmo era o couro. Esticada na parede da sala, muitas estórias nasceriam daquela pele.

Todas as vozes concordaram:

— É justo!

“Mão” sorriu, satisfeito com o resultado do arranjo:

— Apanha, “Dinho”. Pindura na cerca do quintar qui daqui a poco a genti sobi pra tirá o coro.

O menino aproximou-se ressabiado, passou a mão pela cauda do filhote, segurou-a e o levantou. Foi arrastando o pequeno animal escada acima, levando junto seu medo. Uma trilha quase simétrica foi nascendo com as manchas de sangue que se formavam a cada passo, degrau por degrau. Enquanto ia pelo tabuado, os homens ficaram gastando prosa por mais algum tempo. Pouco mais e o menino sumiu ao longe, absorvido pela sombra da ponte…

 

CAPÍTULO XIV – AS REMINISCÊNCIAS DE “MESTRE CILÃO”

Lá ia a fera. O sol descia num caminho de luz, buscando rapidamente o leito fulgurante do horizonte. Os últimos a restarem da plateia que acorreu ao local do achado também começaram a ir embora. Apenas “Mestre Cilão” foi ficando por ali, parado, pensando no animalzinho: um gatinho amarelado, sujo de terra e manchado de preto, a morte sugando-lhe a vida em cada pinta.

Um pernilongo picou-lhe o braço. Não se incomodou. Estava acostumado. Como de hábito, gostava de ouvir a voz do rio, as memórias perdendo-se no tempo, o pensamento galopando nas raias da imaginação. Nos fios do telégrafo as andorinhas faziam a costumeira algazarra de todo fim-de-tarde, elegantes nas suas casacas negro-azuladas, impecáveis vestimentas que as faziam parecer soldadinhos enfileirados.

“Mestre Cilão” caiu na realidade, virou o corpo e saiu no rumo de casa. De repente, algo lhe chamou a atenção, caído que estava entre as folhas de capim-marmelada. Aproximou-se, entre curioso e espantado, e pôde notar que se tratava de uma pata. De onça, sem dúvida. Vasculhou a memória e lembrou-se das palavras de “Dodô”:

— O limpa-trio lambeu um dos fioti e atirô a onça grandi aterro abaxo.

Realmente, convenceu-se, a mãe também havia sido atingida. Recordou-se de uma advertência que ouvira certa vez de um experiente caçador:

— Onça volta até para buscar o cheiro.

Quanto mais a pata. Um arrepio percorreu-lhe a espinha de alto a baixo. Num pulo já estava no tabuado e depois de breve carreira atingiu o outro lado da ponte.

Ainda meio assustado, caminhou mais devagar na direção de casa, cortando pela trilha do barrancão. Depois, descendo por entre um grupo de mangueiras, atravessou a estrada da ponte velha. Fechou com uma batida seca a porteirinha da casa de seu Antônio Cardoso, o guarda-pontes, empregado da ferrovia a quem era incumbida a tarefa de fiscalizar os trilhos para que nada e ninguém ficasse no caminho dos comboios. “Mestre Cilão” Passou pelas crianças que brincavam sob alguns pés de buganvillea, chamada de primavera na linguagem, fez festa aos garotos, chutou a bola que quicava à sua frente e buscou a porta do rancho pensando nas tarefas que o aguardavam: rachar lenha, aguar a horta e o jardim, dar de comer às galinhas e, finalmente, fazer o jantar.

Essa era a sua lida no fim do dia, mais apertada em safra de peixe. Aí, sim, precisava desdobrar-se todo. Não bastasse a labuta no manejar das redes, tarrafa e canoa, sobravam, ainda, os afazeres de casa. Não tinha companheira, nunca se casara e embora sempre fora um solteiro cobiçado, preferiu o celibatarismo.

Ao parar na porta, olhar perdido no horizonte, sentiu de novo aquela pontada no peito. Era a dor da saudade. À sua volta, um vazio que nunca mais haveria de ser preenchido…

 

CAPÍTULO XV – ARROZ COM PEQUI

O dia dava seus últimos suspiros com a chegada da noite. Na cozinha simples do rancho de dois cômodos, chão de terra batida e telhado de zinco furado, derramando estrelas como diz a letra da canção, o fogo ardia no borralho do fogão de lenha, frigindo a gordura em que pôs a fritar duas postas de peixe. Na última trempe o arroz enxugava na panela de ferro, com uma camada dourada em cima formada pelo sumo deixado pelo cozimento de rodelas de pequi.

“Mestre Cilão” saiu ao largo do quintal e caminhou até a cisterna. Nas ingazeiras mais abaixo a passarada fazia uma estripulia doida, disputando um lugar melhor nos poleiros.

Enquanto o sarilho queixava-se num nheque-nheque melodioso, “Mestre” atirava seus olhos já de idade no lombo do Mogi Guaçu, uma cobra brilhante que se perdia nas curvas que estavam à vista. Do outro lado, na rodovia, os caminhões de turma levantavam a poeira da estrada. Eram os trabalhadores avulsos que deixavam cafezais e canaviais a caminho de casa e estavam passando agora pelas três pontes.

“Mestre” lembrou o que disseram na ponte nova. Estariam lá? Ou já teriam deixado o triângulo e subido o rio? Não. Sem uma das mãos e perdendo sangue a onça mãe aguentaria pouco chão. Nem o suficiente para chegar à curva de cima.

Tchimbum! O balde mergulhou no fundo do poço. Nheque-nheque, nheque-nheque, um atrás do outro, até que a vasilha surgiu. “Mestre” emborcou a água cristalina numa lata de vinte litros, baldeando-a na direção da cozinha para depositá-la numa grande barrica de madeira perto do rabicho do fogão.

Destampou o arroz e sentiu o permute da fruta que catava nas redondezas, usada para fazer refresco ou dar sabor à cachaça e aos pratos que gostava de cozinhar. Estava no ponto e então voltou a tampa ao seu encaixe, puxou a panela pelo cabo, trazendo-a para o lado. Fez o mesmo com a frigideira e estava pronto o jantar. Escurecia rapidamente e o calor beijava o rosto da noite.

“O Filhote”, romance de Plínio Vicente da Silva, está sendo publicado em capitulos.  

Para ler os três capítulos anteriores. 

Para ler a partir do primeiro capítulo. 

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