Obsessão deletéria do presidente Jair Bolsonaro para semear dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, justificar e incitar os seus fiéis diante de sua provável derrota em 2022, o voto impresso teve seu pré-sepultamento anunciado na sexta-feira pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). Por sua vez, no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) tratou de jogar uma pá de cal em outra bizarrice: as danosas mudanças no sistema eleitoral. Duas excelentes notícias resultantes de cálculo político após forte pressão.
Lira já havia assistido a Bolsonaro subir o tom dos ataques à democracia, com ameaças de romper os limites “das quatro linhas da Constituição” e disparos contra os ministros do STF, Luís Roberto Barroso, também presidente do TSE, e Alexandre de Moraes, que incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news. Impassível, tinha ouvido também o discurso contundente do presidente do Supremo, Luiz Fux, impondo limites aos arreganhos do chefe do Executivo. Nada fez e foi duramente cobrado por isso. Pelo Supremo e por representantes de peso da sociedade civil, pela imprensa e até por alguns de seus pares, que apoiam o governo por interesses inconfessos mas não querem passar a ideia de alinhamento automático.
Assim, depois de acompanhar a acachapante derrota do voto impresso na Comissão Especial, por 23 a 11, o deputado decidiu levar a pendenga ao escrutínio do plenário. Para se manter vivo, o tema teria de arrebanhar impossíveis 308 votos em duas votações na Câmara e outros dois terços em dupla votação no Senado, tudo antes do dia 2 de outubro. E o fez com ares de democrata-mor, embora tenha se traído nos detalhes da marcha fúnebre.
Errou ao dizer que o “voto impresso estava pautando o Brasil”, visto que o método, rejeitado por 73% do país de acordo com pesquisa Datafolha, é agenda exclusiva de Bolsonaro, que só serve aos interesses dele. E dividiu entre os poderes uma tensão cuja origem é tão somente do presidente da República: “assistimos nos últimos dias um tensionamento, quando a corda puxada com muita força leva os Poderes para além dos seus limites”.
Como se não bastasse, voltou a ameaçar com o botão vermelho, o mesmo que em março ele disse que usaria caso Bolsonaro não se emendasse no combate à pandemia. Nunca nem pensou em usar, demonstrando que a pressão do seu dedo de nada vale e que de sua gaveta não sairá nem um dos 126 pedidos de impeachment.
Sem entrar na polêmica do voto impresso, o presidente do Senado também se pronunciou na sexta-feira, depois de mudez estridente em uma semana gravíssima. Usou uma entrevista à GloboNews para se apresentar como um político balizado, que não cai nas armadilhas de Bolsonaro e nem nas de Lira. Disse crer que a Câmara cuidará dos funerais do voto impresso, e que o Senado não deixará que as mudanças no sistema eleitoral inventadas por Lira vinguem.
Mordido pela mosca que Gilberto Kassab, presidente do PSD, soltou em torno de sua cabeça, falou como pré-candidato à Presidência da República.
Sem criticar os deputados, mas alfinetando Lira – “Temos criatividade legislativa no Brasil de tentar mudar as regras com a bola rodando” -, Pacheco descartou a hipótese de o Senado dar aval a aventuras como o Distritão. O sistema, que elege o mais votado e pronto, privilegiando quem já é conhecido, famosos, artistas, comunicadores e donos de igrejas, já foi derrotado no Congresso por duas vezes. Muito menos apoiar a volta das coligações partidárias e o fim da cláusula de barreira, instrumentos aprovados em 2017 e que ainda não foram testados em sua plenitude. Mudar isso agora “não é uma opção inteligente”.
Lira e Pacheco são do ramo. Quase perderam o tempo da política, mas ao recuperá-lo o fizeram de forma a definir o jogo. Pacheco conseguiu ficar melhor na fita. Nos lances a seguir, a posição do presidente da Câmara é mais frágil. Até por estar mais atrelado a Bolsonaro, pode ver sua decisão de levar o voto impresso ao plenário se voltar contra ele, com o jogo pesado da tropa de choque bolsonarista quando a derrota for consumada.
Mais: se o presidente mantiver a mesma toada depois da voz do plenário, não haverá motivo para o dedo continuar pregado no amarelo. Lira terá de apertar o vermelho – ou se contentar em ser mais um capacho de Bolsonaro.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/8/2021.
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