Na ditadura militar que Jair Bolsonaro tanto admira, havia, segundo cunhou Stanislaw Ponte Preta, o Festival de Besteiras Que Assola o País. Agora, no terceiro ano do governo do Capitão das Trevas e da Morte, estamos diante do “Festival de mentiras que assola a CPI”, como diz o título do editorial de O Globo desta sexta-feira, 21/5, ou o “Festival de Mentiras Que Assola o País!”, como Vera Vaia titulou na quinta-feira seu artigo.
A situação hoje é tão absolutamente apavorante que quase dá para ter saudades dos tempos em que Stanislaw Ponte Preta lançou os três volumes do seu Febeapá.
O volume 1 saiu em 1966, o 2 em 1968 e o 3 em 1968. A ditadura, até então, é preciso reconhecer e dizer, era um tanto branda – em comparação com o que viria a ser a partir de 13 de dezembro de 1968, com a edição do AI-5 que Bolsonaro, seus fedelhos e seus descabeçados adoradores veneram.
A ditadura que Bolsonaro realmente admira, e elogia, e prega, sem parar, é a que veio depois do AI-5. A que não apenas cassava direitos políticos – mas torturava e assassinava. Censurava a imprensa – botava censores dentro das empresas jornalísticas para dizer o que podia ser publicado e para impedir que fosse publicado o que a ditadura não queria. Mas, sobretudo, torturava e assassinava quem fosse contra ela.
Estamos muito longe disso. Vivemos ainda em uma democracia, a imprensa é livre, o Congresso funciona normalmente, assim como o Judiciário.
E, no entanto…
Diabo!
No entanto, estamos diante de uma situação tão apavorante que até fica parecendo que o Brasil de hoje está pior do que nos primeiros anos da ditadura militar.
A mentira institucionalizada nestes pavorosos dois anos e cinco meses de desgoverno Bolsonaro é uma ameaça tão grande à democracia quanto os quatro primeiros atos institucionais da ditadura instalada no dia 1º de abril de 1964 – os que permitiram o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de deputados, senadores, governadores, a prisão de políticos, líderes sindicais, jornalistas.
Dois artigos publicados nesta sexta-feira, 21/5, mostram com clareza e brilho essa realidade apavorante. E eles parecem que foram escritos para um complementar o outro.
Diz Eliane Cantanhede:
“Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e Fabio Wajngarten cumpriram o mesmo papel na CPI da Covid: mentir, para negar o negacionismo e acobertar os erros óbvios do presidente Jair Bolsonaro no combate a uma epidemia que já custou a vida de mais de 440 mil brasileiros.
Diz Pedro Doria:
“Decaimento da verdade é quando lentamente uma sociedade deixa de ligar para a verdade, para o consenso a respeito de um conjunto básico de fatos. Decaimento democrático é o que vivemos quando há decaimento da verdade.”
Eis as íntegras destes dois artigos precisos e preciosos.
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Um não manda, todos mentem
Por Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo, 21/5/2021
Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e Fabio Wajngarten cumpriram o mesmo papel na CPI da Covid: mentir, para negar o negacionismo e acobertar os erros óbvios do presidente Jair Bolsonaro no combate a uma epidemia que já custou a vida de mais de 440 mil brasileiros. A célebre frase de Pazuello, “um manda, outro obedece”, virou “um não manda e não sabe de nada, todos os outros fazem tudo como bem entendem”.
É para rir ou para chorar? O general Pazuello jura que nunca foi desautorizado pelo presidente, o diplomata Araújo garante que não causou atritos com a China, Wajngarten esqueceu que acusara o Ministério da Saúde da era Pazuello de “incompetência”. Há, porém, vídeos, áudios, textos e reportagens nas várias mídias provando o oposto. De celulares em punho, os senadores exibem áudios que trituram as mentiras.
No caso de Pazuello: num dia, ele anunciou, para governadores, a compra de 46 milhões de doses da Coronavac; no dia seguinte, Bolsonaro disse que ele é quem manda, não abre mão da sua autoridade e não compraria “vachina” nenhuma; no terceiro dia, os dois confraternizaram: “um manda, outro obedece”.
No caso de Ernesto Araújo: está documentada, antes e durante sua passagem no Itamaraty, a enxurrada de desaforos e delírios contra a China, que, não bastasse ser o nosso maior parceiro comercial, é o maior produtor de vacinas do mundo – e das únicas vacinas usadas no Brasil até 29 de abril deste ano. Para ele, a China quer destruir os valores cristãos e o próprio Ocidente.
E, no caso de Wajngarten, que ocupava a Secretaria de Comunicação quando se envolveu – sem sucesso, aliás – na negociação das vacinas da Pfizer: para azar dele e sorte da verdade, sua entrevista à revista Veja está gravada e a acusação de “incompetência da Saúde” é bem audível.
Só precisa mentir quem não pode dizer a verdade. Logo, o festival de mentiras na CPI é para tentar salvar Bolsonaro, que está comprometido até a medula por atos, omissões e falas sobre vacinas, isolamento, máscaras, cloroquina. O papel da comissão é consolidar, divulgar e amplificar o que só não viu e não sabe quem não quis e não quer.
As mentiras de Pazuello não são novidade, mas continuam chocantes. No primeiro dia, ele mostrou-se muito bem treinado e os senadores pareciam despreparados, o que bastou para uma onda de alívio no Planalto e no Exército. Ontem, a estratégia da cúpula e da oposição e dos independentes mudou: os senadores falaram muito, apontando os erros do governo e do presidente, dando pouca chance para Pazuello falar e mentir.
Ele, porém, já começou dizendo que é “um oficial-general “e oficial-general não mente”. Imagine se mentisse… E, ao insistir em negar que a Saúde tivesse criado e usado o aplicativo TrateCov, para massificar a cloroquina, saiu-se com essa: “Foi um hacker que postou”. Nem o presidente da comissão, o equilibrado Omar Aziz, aguentou: “Muito competente esse hacker, botou até na TV Brasil!”
Não dá ainda para prever o desfecho da CPI, mas ela já cumpre o seu primeiro objetivo: consolidar e jogar luzes nos erros de Bolsonaro e seu governo na pandemia. A comissão é, assim, educativa, mobilizadora, e já está sendo apelidada de “novo BBB”, ao cativar milhões de atentos brasileiros na TV, rádio, internet.
E, se Pazuello, Ernesto Araújo e Wajngarten, que também faziam tudo o que ele mandava, já foram demitidos, Bolsonaro perdeu o timing para se livrar do queridinho Ricardo Salles, do Meio Ambiente, outra área crítica do governo e alvo da PF. Com isso, e com o “tratoraço”, ele perdeu também o discurso de que não há escândalos no seu governo (noves fora as rachadinhas anteriores…). A situação de Bolsonaro, portanto, não é nada, nada confortável.
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Mentem, e a CPI nem aí
Por Pedro Doria, O Globo, 21/5/2021
O general Eduardo Pazuello desferiu o mais grave ataque contra a democracia brasileira desde o início da CPI da Covid. Um ataque que não foi suficientemente apontado. E um ataque que tem por cúmplice involuntário o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM). Não há gente suficiente percebendo a gravidade da naturalização da mentira que está ocorrendo ao longo destes depoimentos e de que a CPI é cúmplice. Não estão percebendo que é abrir mão da verdade no debate público que faz corroer a democracia.
O primeiro a mentir foi o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten. Afirmou que nada tinha a ver com uma campanha desferida sob seu comando contra a política de isolamento social. O relator, Renan Calheiros (MDB-AL), quis prendê-lo em flagrante. Aziz não topou — e a decisão é dele. Aí o ex-chanceler Ernesto Araújo negou ter atacado a China. Há tuítes, artigos assinados, vídeos. Não importa. Fez na cara dura, escondeu-se atrás da máscara e simplesmente mentiu.
Nunca havia se mentido numa CPI de forma tão descarada, com provas do contrário a um Google de distância. E é por isso que o depoimento do ex-ministro da Saúde é muito mais grave do que o dos outros. Wajngarten e Araújo mentiram fingindo falar a verdade. Pazuello não. Ao dizer que jamais recebeu ordens para não comprar vacinas do Instituto Butantan, foi confrontado com o vídeo em que afirmou “um manda, o outro obedece” perante justamente essa ordem. Dada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Pazuello não titubeou: “é coisa de internet”, feita por “agente político”.
Ou seja, na lógica torta do ministro, o presidente mente para seus eleitores e fãs, e isso é normal. Pazuello não fingiu que a mentira era verdade. Pazuello chamou a mentira de mentira e falou que é assim que se faz política.
Talvez seja essa a impressão que os generais tenham de políticos. Que seu trabalho é mentir. Se for, estão errados. O trabalho dos políticos é trazer à mesa as diversas correntes de opinião presentes numa sociedade e negociar as diferenças. Sim, sempre houve mentiras. Mas, quando pegos em mentiras, políticos sofriam consequências.
Quem estuda o assunto vem usando um termo — truth decay. Decaimento da verdade. Em química, decaimento é o lento processo pelo qual o núcleo instável de um elemento perde energia por radiação. Em biologia, é o igualmente lento apodrecimento de um corpo pela ação de bactérias ou fungos. A palavra está em voga nas Ciências Humanas. Decaimento da verdade é quando lentamente uma sociedade deixa de ligar para a verdade, para o consenso a respeito de um conjunto básico de fatos.
Decaimento democrático é o que vivemos quando há decaimento da verdade.
Jair Bolsonaro mente. É sua prática corriqueira. Seus eleitores sabem disso — apenas não ligam. Para eles, é até engraçado. Mas, para que a mentira se estabelecesse a ponto de ameaçar a democracia, ela precisou antes ir lentamente se esgueirando até se legitimar. Naquela campanha dura, agressiva e canalha que foi a da eleição presidencial de 2014, Dilma Rousseff tirou Marina Silva do segundo turno com publicidade de TV que mentia. Escancaradamente. Agora, Ciro Gomes, candidato à Presidência em 2022, contratou o marqueteiro que produziu aquilo para ajudá-lo a chegar ao Planalto.
Políticos estão legitimando a mentira.
Alguém precisa fazer algum gesto. O gesto é a prisão de quem mentir sob juramento escancaradamente dentro do Congresso Nacional. Sem um gesto grande, estamos entregues ao apodrecimento da democracia, acelerado pelas redes sociais. É preciso ação. O decaimento lento da verdade está em suas fases finais.
21 e 22/5/2021
Este post pertence à série de textos e compilações “Fora, Bolsonaro”.
A série não tem periodicidade fixa.
Duas reportagens mostram como oi bolsonarismo luta para desestabilizar as polícias estaduais,. (47)
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