Todos os brasileiros do bem

Assim que Caetano começou a cantar a primeira música de sua segunda live nestes tempos da pandemia, “Muito Romântico”, do disco Muito, de 1978, uma das canções que ele fez para Roberto gravar, não consegui me conter, e fiz um post no Facebook: “Putaqueopariu”.

Só um pouquinho depois escrevi o complemento: “Não é xingamento, não, tá? É encantamento puro diante da maravilha que é esse senhor Caetano Veloso…“

Não foi uma exclamação assim absolutamente solta. Tinha a ver com Caetano. O último show do Caetano que vi foi o que ele dividiu com Milton Nascimento; haviam gravado juntos canções para a trilha sonora de O Coronel e o Lobisomem, de Maurício Faria, e fizeram shows juntos, creio que em 2005. Foi num daqueles lugares grandes ao Sul do que eu considero São Paulo, um daqueles Tom Brasil, ou coisa parecida. Fomos minha filha, a Suely mãe dela, Mary e eu.

Lá pelas tantas, Milton canta sozinho uma música; Caetano fica olhando – e, ao fim, depois dos aplausos, se aproxima do microfone e declara: – “Filhodaputa!”

Uma exclamação diante do esplendor. A mais perfeita exclamação diante de um esplendor, eu acho.

Bob Fosse fez isso em All That Jazz. Joe Giddeon, o alter-ego dele, coreógrafo e diretor de cinema, está fazendo a primeira leitura de sua nova peça musical com o elenco, diante dos dois produtores, pai e filho, e o maestro. É ali que aquelas pessoas todas ficam conhecendo o texto da peça. Entre os atores está a ex-mulher de Joe Giddeon, Audrey (o papel de Leland Palmer). Ela – isso é muito claro – ainda estava apaixonada pelo ex-marido, que havia tido diversos casinhos, até que ela não aguentou mais e se separou. A leitura do texto vai indo, vai indo. Os atores que vão lendo as falas dão risadas depois de lerem pela primeira vez as ótimas piadas.

Audrey, a ex-mulher, vai ficando ao mesmo tempo absolutamente encantada e furiosa com o talento maravilhoso do marido. E não consegue impedir que escape um “son of a bitch!”

É a exclamação perfeita diante do esplendor.

***

Um turbilhão de memórias, de imagens, veio à minha cabeça entre o fim da live do Caetano e o início deste texto. Entre as memórias, as imagens, não estava essa sequência fantástica do All That Jazz – mas os textos são assim, eles se escrevem, à revelia do sujeito que está diante da lauda branca, perdão, do branco da tela, e então a expressão de imenso prazer, encantamento, misturado com uma certa raiva, que a atriz Leland Palmer mostra, me veio que nem uma roda-viva e tentou mandar minhas outras memórias pra lá.

Deixando as memórias pra lá – pra mais adiante, se o texto me permitir -, gostaria de registrar algumas coisas básicas.

Caetano Veloso, que lá pelas tantas se definiu como um músico & instrumentista amador, é profissional há… 2020 menos 1967, ano de Domingo, seu primeiro álbum, dá quanto? 53 anos!

Profissional há 53 anos, Caetano Emanuel Viana Telles Veloso se mostrava na sua segunda live da pandemia tenso, nervoso, emocionado.

Como é que pode?

Pode – tanto que ele estava. A coisa de se apresentar ao mesmo tempo para ninguém e para o Brasil inteiro deve ser de fato muito estranha, muito esquisita, muito doida. Ele estava, pelo que entendi, no palco do Teatro Claro do Rio de Janeiro – diferentemente de sua primeira live, feita alguns meses atrás, que foi mais doméstica, caseira. Estava no palco de um gigantesco teatro, sabendo que o show estava sendo transmitido ao vivo para o Brasil inteiro, e sendo ouvido por quase todas as pessoas de bom caráter e de alguma informação do Brasil – mas ao mesmo tempo tinha diante de si uma platéia vazia e um absoluto silêncio.

É algo diferente, novo, inesperado – mesmo para um profissional com mais de meio século de experiência.

Não fui eu que notei que Caetano, um de meus maiores ídolos, um dos artistas que mais admiro na vida, estava tenso, nervoso, emocionado. Foi minha filha, que, do outro lado da avenida do bairro em que vivemos, falou isso – e até disse que ele errou um trecho de letra, em uma das primeiras músicas que cantou. (Não notei – e sei de cor praticamente todas as letras das canções de Caetano.)

Marina, com seus 7 anos de larga experiência de vida, disse para a mãe, do outro lado lá da avenida, que achava que ele estava nervoso porque o teatro estava vazio.

***

Mais emocionado, eu diria, do que propriamente nervoso.

Ouso dizer que Caetano sabia perfeitamente que ele hoje estava, como eu disse algumas linhas atrás, se apresentando para quase todas as pessoas de bom caráter e de alguma informação do Brasil.

Digo “quase” porque – é incrível – sempre há gente que não sabe o que foi anunciado e garantido e prometido durante semanas e semanas. Meus amigos Valdir Sanches e Melchíades Cunha Júnior, só para dar os exemplos de dois jornalistas teoricamente bem informados, não estavam sabendo da live do Caetano. Chose de lóki.

***

Emocionado, tenso, nervoso, Caetano Veloso, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, um dos melhores compositores dos século XX e XXI, fez uma apresentação esplêndida, excepcional, maravilhosa, de babar, de aplaudir de pé como na ópera.

Espalhou, entre canções de beleza rara, mensagens e mais mensagens. Caetano é um ser político, sempre foi. Talvez seja até mais político do que seu amigo-irmão Gilberto Passos Gil Moreira, que foi vereador em Salvador e chegou até a ser ministro durante o governo Lula.

Ao falar sobre a segunda canção que apresentou, “Anoiteceu”, de Assis Valente (“eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”), Caetano enfatizou, destacou, realçou, ressaltou, salientou, evidenciou – agora chega de sinônimos – essa tristeza tão absoluta quanto absurda de sermos um dos países mais injustos do mundo. Um dos países que menos sabem distribuir riqueza in this whole wide universe.

Antes de apresentar a última música dos 1h45 de puro brilho, fez uma homenagem a Roberto Carlos e Simone, dois artistas brasileiros que acabaram misturando seus nomes ao Natal, e foram criticadíssimos por isso. Foi uma maravilha: Caetano, o grande pavão, abriu sua cauda magnífica para saudar Roberto e Simone – uma beleza imensa.

E então encerrou com outra das canções do álbum Muito que apresentou ao longo da live, a que fala direto, com todas as letras, que gente é pra brilhar, não pra morrer de fome.

E aí me lembrei que houve gente que criticou durissimamente o álbum Muito, quando ele foi lançado. Ô meu Deus do céu…

Mas não quero tergiversar muito agora.

A rigor, gostaria demais de tergiversar. Há umas 37 lembranças que o show me trouxe e às quais gostaria de me referir – mas não vou mexer com isso agora, não.

Me permito tergiversar só uma vezinha aqui – o eventual leitor que me permita, vá.

Me lembrei, durante o show-live do Caetano hoje, de uma sensação que tive em Montevidéu, no meio de umas 10 mil pessoas reunidas para a inauguração da maior arena do Uruguai, o maior lugar para a realização de shows e eventos esportivos em ambiente coberto – um show do espanhol Joan Manuel Serrat.

No meio daquela multidão que não acabava mais, falei com a Mary: – “Aqui não tem nenhum mau caráter. Todo mundo que está aqui é gente do bem.”

A live de Caetano foi como o show de Serrat no Uruguai: não tinha um mau caráter assistindo.

O que tem a ver com o que eu queria registrar, ao final desta anotação. Eu queria registrar aqui o que anotei no Facebook nos momentos finais da live:

“Me ocorre que a  canção que Caetano fez para a Tieta do Cacá Diegues é uma ode ao progresso, ao andar pra frente. Um libelo contra as trevas, a caretice, a imbecilidade. A Tieta do Caetano é o Fora Bolsonaro!”

É só ouvir para constatar.

19 e 20/12/2020

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