Que o presidente Jair Bolsonaro é um mentiroso profissional ninguém mais discute. Não pairam dúvidas quanto ao valor de suas palavras, que, quando muito, beiram moedas de 3 centavos. Mas em sua live semanal, na última quinta-feira, ele surpreendeu até os aliados mais fiéis. Jogou no lixo a dignidade – se é que ela existe – do ministro Kassio Nunes Marques, indicado por ele para o STF, e desencadeou uma nova crise com a Câmara, à beira da sucessão de Rodrigo Maia.
O presidente dedicou boa parte da transmissão ao vivo para defender com unhas e dentes seu afilhado no Supremo, desancado por bolsonaristas fanáticos devido ao voto dado em favor da vacinação compulsória. Na verdade, um voto híbrido e isolado que reconhece a obrigatoriedade, mas a condiciona ao Ministério da Saúde. Os demais ministros autorizaram a União, Estados e municípios a estabelecerem medidas restritivas aos que não se vacinarem.
Aos críticos, Bolsonaro disparou, no melhor estilo olaviano: é uma “direita burra, direita idiota, fedelho, papagaio de internet e analfabeto funcional”.
Elogiou ainda outros votos do ministro – que até agora só fez agradar o padrinho. Quando viu que tinha exagerado na dose, tentou consertar dizendo que não tinha ascendência sobre o protegido, mas que o indicara “por aquilo que tinha de afinidade com ele”.
Tivesse brio, Nunes Marques ficaria roxo de vergonha diante de seus pares e se afastaria de julgamentos de interesse direto do presidente.
Mas o ponto alto do programa foi a mentira descarada de que Rodrigo Maia teria deixado “caducar” a Medida Provisória sobre o pagamento do 13º salário do Bolsa Família. De uma só vez expôs o desprezo pelos mais pobres, a bambeza de sua índole e a desordem de seu governo que, meses antes, pedira a Maia que não colocasse a matéria em votação. Tanto o ministro Paulo Guedes quanto o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), tiveram de se esmerar em contorcionismos para negar a impostura do chefe sem contradizê-lo abertamente.
Da tribuna da Casa que preside, Maia foi direto e didático: “O presidente da República mentiu”.
Para desespero de Arthur Lira (PP-AL), candidato do Planalto na acirrada sucessão da Câmara, Bolsonaro deu a Maia, de mão beijada, mais um exemplo da fragilidade de seu caráter. Que se cuidem os espertinhos ou incautos que creem nas ofertas de mundos e fundos para votar em Lira.
Será difícil aferir se o episódio pesou ou não no posicionamento dos deputados que depois de mais uma mentira presidencial reforçaram o grupo de Maia. Mas o fato é que, na noite de sexta-feira, ele recebeu o apoio formal dos partidos de esquerda e passou a contabilizar 281 votos, 24 a mais dos 257 necessários para eleger seu sucessor.
Bolsonaro parece se divertir com as mentiras na montanha russa de trapalhadas e posições antagônicas que exprime. É aquele que pela manhã pede desculpas ao país – “se algum de nós exagerou, foi no afã de buscar solução”, e deposita esperanças nas vacinas contra a Covid-19. Depois repete os ditos da noite anterior à sua conversão conciliatória: volta a praguejar contra a vacina, insiste nos milagres da cloroquina. Mais tarde, confessa que seu governo não proverá vacinas para todos no ano que vem e chama de “inócua” a decisão do STF.
Há quem creia que essa ciclotimia faz parte de um método politicamente medido. Pode ser. Mas até então a estratégia se mostra frouxa: tem colhido mais derrotas do que vitórias. Basta ver os resultados das eleições municipais, as dificuldades no Parlamento, mesmo depois de abrir o cofre ao Centrão, e na Justiça, ainda que tenha Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República e Nunes Marques no STF para chamar de seus.
Se é verdade que mantém inacreditáveis 35% de aprovação popular, Bolsonaro é também o segundo presidente com a pior colocação na metade do mandato desde a redemocratização. Só Fernando Collor de Mello, meses antes de ser cassado, cravou percentuais mais baixos.
O êxito de Bolsonaro está na desconstrução. Aqui, sim, ele aplica um método sistêmico: o da mentira, principal arma para demolir os demais poderes, a educação, o meio ambiente, a cultura… A saúde, onde ele, criminosamente, tem conseguido angariar apoiadores anti-vacina, abalando seriamente o invejável sistema de imunização brasileiro. Seu sucesso depende do fracasso do país.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 20/12/2020.