Há fumo e há fogo

Estou a ver, com estes olhos que, rezo a Deus, o vírus ainda não coma, o puto Didier a correr pelas ruas de Dakar, de tronco nu e a levar com as nuvens de Dicloro-Difenil-Tricloroetano. Didier é da minha idade, meu kota um ano apenas, e correu pelas ruas da capital senegalesa como eu corri pelas de Luanda. Nesse tempo em que mesmo o leão falava a um elefante de trombas, matava-se a minúscula e infecta bicharada voadora lançando ondas de DDT nas ruas tropicais. No Senegal como em Angola.

O DDT vinha num carro que entrava por aqueles nossos dias de sol incan­des­cente, sem Valquí­rias imperiais nos alti­falantes. Um carro só, com bizarro depó­sito atrás, anun­ci­ado pelos gritos das sen­tinelas do bairro que nós éra­mos: “Carro do fumo, carro do fumo!” E o DDT, para nós um indiscutido pesticida, saía espesso, em nuvens glo­riosas, imac­u­ladas. Enquanto as mães, já arma­das em classe média colonial, cor­riam a fechar as chei­ro­sas casas de ale­crim e alfa­zema, nós, miúdos africanizados, mais lum­pen do que peque­nino bur­gue­ses, tirá­va­mos as cami­sas e mer­gul­há­va­mos naquele algo­dão doce, naqueles cumulus congestus que nos sabiam a céu. Lambíamos e bebía­mos DDT, inalávamos DDT. O Dicloro-Difenil-Tricloroetano entrava-nos pelos poros, nari­nas, robus­tos pul­mões, enquanto à nossa volta os inimi­gos, não sei quan­tas espé­cies de insec­tos voa­do­res, ras­te­jan­tes, tom­ba­vam sem remis­são. Mor­riam, massacre, livrando-nos da malária, das terríveis febres palúdicas.

Didier Raoult, um dos maiores epidemiologistas deste mundo aflito, é filho desse caldo e desse espectáculo público: matar para não morrer. Sobreviveu em Dakar ao DDT, esse clorobenzeno cuja descoberta os suecos saudaram dando o Nobel ao cientista suíço Paul Müller, e que, a mesma Suécia, nos anos 70, proibiria ao mundo pelos efeitos colaterais no ambiente. Era, nos anos 50 e 60, o que tínhamos e livrou-nos de muito paludismo.

Ora, mesmo obrigando-me a deslizar por intimidades inconfessas, se quiser dizer a verdade, a verdade é que o carro do fumo, o DDT, tinha uma bela amante, a quinina. Ou melhor, o sulfato de quinino que papávamos em comprimidos e, pela urgência de chegar ao que quero, desculpem-me as tonitruantes asneiras que me estejam a sair da boca para fora. Do que mais me lembro é das caixas de resochina. Quantas caixas mamou o candengue Didier?

Didier Raoult é, já se percebeu, o heterodoxo cientista que veio proclamar ao mundo a necessidade de regressar a esse quinino dos trópicos, recomendando que se desse aos infectados do Covid 19 a cloroquina. O que ele mesmo fez, por sua livre e imediata iniciativa, antes que a boquiaberta burocracia conseguisse articular palavra. Espírito vagabundo, marujo no fim da adolescência, em transatlânticos e em conradianos navios de carga, anacrónicos cabelos hippies, Didier ainda fez uma primeira licenciatura em literatura, antes de aceitar o dinheiro do pai, velho médico militar, para fazer medicina.

A sua reconhecida carreira científica como infectologista enche de beijos a genialidade. Chamam-lhe “pescador de micróbios” tantos foram os seus “milagres”: devemos-lhe o maior vírus já isolado pelo homem e também a maior bactéria e a descoberta de 31 espécies bacterianas novinhas em folha. E, se queremos falar de pandemias, estabeleceu o primeiro diagnóstico retrospectivo da Peste Negra, da Idade Média.

Com a obstinação do miúdo de musseque que corre atrás do carro do fumo e das nuvens de DDT, o francês Didier Raoult, nascido em Dakar, quer salvar o mundo. Move-o a ousadia do risco.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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