E então é Natal, como nos lembra Simone, essa mulher que chega aos 70 anos belíssima como o pôr-do-sol visto do Porto da Barra da cidade em que nasceu. Quando John Lennon canta exatamente a mesma frase, and so this is Christmas, ninguém enche o saco – ela reclamou, com carradas de razão. Já se é ela, todo mundo chia.
E é mesmo, todo mundo reclama que Simone é insuportável quando canta que e então é Natal. Até minha amiga Vera Vaia, ao final da crônica dela de poucos dias atrás, em que falava da rachadinha de Flávio Bolsonaro e depois do programa do Porta dos Fundo que faz gozação com Jesus Cristo, saiu-se reclamando que é dose ter que ouvir até no supermercado que e então é Natal.
Na última quinta-feira, dia 19, o dia em que o Estadão publicou a entrevista feita por Julio Maria com Simone, na qual ela fala do bullying que sofreu por ter gravado a versão em português da canção de John Lennon, publiquei isto aqui no Facebook:
“So this is Christmas” é uma bela canção. Muito bela canção. Babei por ela durante anos.
Mas encheu o saco. Prescreveu.
Quando Simone gravou a versão, já tinha enchido o saco, já tinha prescrito.
Não dá pra ouvir. Nem com John Lennon, nem com Simone.
Agora, que Simonão continua linda pra cacete aos setentinha, lá isso ninguém discute, né?
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Sim: babei pela canção durante anos – mas, diacho, ela ficou tão no passado que escrevi erradamente seu título. Não é “So this is Christmas”, e sim “Happy Xmas (War is Over)”. Foi lançada em single, compacto simples, em novembro de 1971, assinada por Yoko Ono e John Lennon – e, em outdoors nas ruas de Nova York, o casal anunciava que a guerra acaba se você quiser. Ele estava com 31 anos – e eu, com 21, era um beatlemaníaco assumidamente lennonista. Tudo que ele fazia, naqueles primeiros anos com Yoko e sem os Beatles, era politico, era esquerda radical – para os padrões de Grã-Bretanha e especialmente dos Estados Unidos, onde tinha escolhido viver – e tudo que era esquerda radical o jovem radical que eu era aos 21 anos adorava.
A radicalização tem essa coisa – fica velha, prescreve. A canção que John Lennon fez contra a guerra do Vietnã muito mais do que como uma canção de Natal ficou velha, prescreveu, que nem meus sonhos e besteiras radicais.
Sonhos – o comunismo, a absoluta igualdade, o fim da propriedade privada. Besteiras – se me perguntassem em 1971 se eu gostaria de ter filho, seguramente mandaria ver a frase de Machado. “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Em 1975 nasceu minha filha, a melhor de todas as coisas que me aconteceram na vida – e olha que não foram poucas as coisas boas.
El tempo pasa, nos vamos poniendo viejos, como diz o Pablo Milanés, e com o passar do tempo até deixei de ser lennonista – mais velho, abracei feliz da vida o macartneyismo, uma ideologia muito, muito mais melódica, consistente e bela.
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Babei por dezenas e dezenas e dezenas de canções, ao longo destes anos todos que me deram para viver, muito mais do que eu esperava. Depois que a gente vai ficando mais e mais velho, o número de músicas que realmente nos cativa, nos deixa de quatro, vai diminuindo, acho. É natural. Uma das que me fizeram babar demais, nos últimos anos, foi “River”, que Joni Mitchell gravou em seu disco Blue, por coincidência também de 1971, o mesmo ano de “Happy Xmas (War is Over)”. Tenho o disco Blue faz muitos anos, mas na verdade só percebi a beleza absurda da música “River” quando ouvi direito a gravação de Madeleine Peyroux em dueto com k.d. lang no disco Half the Perfect World, de 2006.
Me permito lembrar aqui o que escrevi poucos dias antes do Natal de 2010:
Todo mundo que se irrita com Natal (e o número é muitíssimo maior do que se poderia imaginar) deveria ouvir Madeleine Peyroux e k.d. lang cantando “River”. É uma vingança suave, doce, melancolicamente doce, contra essa insanidade de hordas de pessoas fazendo compras freneticamente, freneticamente com a necessidade básica, urgente, absurda, estressante, de se mostrar feliz.
Joni Mitchell tinha ridículos 28 anos quando compôs “River”. Além de à frente de sua própria idade, Joni Mitchell é a anti-obviedade em forma de beleza pura. Tudo que ela faz é sutil, em tom propositadamente menor. É incapaz de um grito, uma exclamação. Faz a opção preferencial pelas entrelinhas, pelo não-posto às claras.
“River” não é propriamente sobre o Natal: é um lamento de quem fez besteira contra a relação: “Sou egoísta e sou triste, agora já foi, perdi o melhor amor que podia ter tido”. Mas ela quis justapor a tristeza com o período do ano em que é necessário, é urgente, é estressantemente obrigatório ser alegre. E então, suavemente, ela colocou as notas de “Jingle Bells” abrindo e fechando a canção: “O Natal vem chegando, estão cortando árvores, estão reunindo as renas e cantando canções de alegria e paz. Ah, gostaria de ter um rio no qual eu pudesse fugir. Mas não neva aqui, fica um belo verde. Gostaria de ter um rio tão grande que eu pudesse ensinar meus pés a voar.” Além de tudo, uma canadense exilada se confessando um tanto pouco à vontade em terra mais quente, que teima em ser verde em vez de branca-barrenta.
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Fiz vários textos que não louvavam de forma alguma o Natal, nas épocas natalinas dos últimos muitos anos. Também em 2010, dias antes desse sobre “River” de que transcrevi parte, fiz o mais virulento de todos. Começava assim:
Como se não bastasse tudo o mais, ainda por cima inventamos o Natal.
Como se não bastassem o câncer, a aids, o enfarte, a proibição de fumar, de beber, de comer sal, gordura, tudo o que tem gosto e dá prazer. A dor de dentes, a dor nas costas, a hipertensão, o triglicérides, o colesterol, a miopia, o astigmatismo, o enfisema, o glaucoma, a hemorróida, a herpes.
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O Natal não muda, nós é que mudamos, como insinuou o mesmo Machado no soneto famoso. Em 2010 o Natal me parecia pior que o câncer, a aids, o enfarte, a proibição de fumar, de beber, de comer sal, gordura, tudo o que tem gosto e dá prazer, a dor de dentes, a dor nas costas, etc, porque tínhamos perdido Suely, a mãe da minha filha.
Suely amava família, festas, festas em família, Natal; passamos juntos a maior parte dos Natais de nossas vidas, mesmo depois que já tínhamos nos separado e cada um tinha se casado de novo – e os Natais logo depois que a perdemos foram profundamente tristes.
Até que veio Marina.
Assim que veio Marina, os Natais mudaram. Quer dizer, nós mudamos de novo, é claro. Voltamos a ser alegres nos Natais.
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Para o mês de dezembro de 1990, quando fazia 10 anos da morte de John Lennon, Regina Lemos me encomendou um texto sobre ele para publicar na revista que dirigia, a Moda Brasil. Fiz um texto cheio de informações, mas ao mesmo tempo muito pessoal:
John Lennon é uma das pessoas mais fascinantes que passaram por este planeta, e não só por ter sido o gênio e o motor criativo dos Beatles, a mais completa tradução dos anos que mudaram tudo. Especialmente, por ter mostrado, com sua vida, a grande beleza (rara, raríssima, como todas as grandes belezas) que é crescer, aprender, amadurecer, tornar-se mais sábio. Por ter registrado tão nitidamente na História a sua história pessoal, a trajetória luminosa do temor do medo à convivência com os medos, o caminho da angústia à sabedoria, da dor à paz.
E lembrei no texto que a canção “Mother”, do seu a rigor primeiro disco pop solo, John Lennon Plastic Ono Band, de 1970, abria com o som de batidas de sino – batidas pesadas, sinistras, de um “sino de morte”, como ele mesmo definiria três dias antes de ser assassinado, no dia 8 de dezembro de 1980. Dez anos depois de “Mother”, em 1980, abriu também com sinos a primeira faixa de Double Fantasy, o disco em que despiu sua paz e sua felicidade por estar fora do carrossel da busca de fama e sucesso, e, sobretudo, por estar sendo amado pela mulher e pelo filho que amava. Eram sininhos suaves, alegres, no começo de “(Just Like) Starting Over”, começando de novo depois de cinco anos fora dos estúdios, suaves e alegres como os versos “Nossa vida juntos é tão preciosa, juntos nós crescemos, nós crescemos”.
“Foi um longo tempo pra chegar de um lúgubre sino de igreja até esse doce sininho de felicidade”, constatou, três dias antes que esgotasse o tempo que lhe foi dado para viver.
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Para minha filha, para mim, não foi um longo tempo de Natais tristes. Foram três Natais após a perda de Suely – e aí chegou Marina.
Este agora será o sétimo Natal com Marina.
E estou pronto para as canções alegres que saúdam o Natal.
Não para “Happy Xmas (War is Over)”, nem para a versão com Simone.
Mas aberto para qualquer outra.
Como “Feliz Navidad”, que José Feliciano canta maravilhosamente – e que, em outra gravação, ilustra um filmetinho delicioso que anda circulando nas redes.
https://www.youtube.com/watch?v=dgQBdUNELuE
E – por que não? – até para a velhíssima “Jingle Bells”.
Sempre achei que na voz de cantores especiais, os mais especiais, qualquer “Feliz Aniversário” fica uma maravilha.
Se o eventual leitor ouvir esta versão de “Jingle Bells” na voz da Voz, num videozinho muito simpático, tenho a certeza de que concordará comigo.
Que besteira isso de reclamar do Natal, meu!
Jingle Bells! Feliz Navidad!
22/12/2019
O texto já estava fantástico. Com as fotos de capa então…
Sérgio, escrever tantas “laudas” assim, e ainda conduzir o leitor com interesse crescente até o final, é privilégio reservado apenas aos craques. Mais de um craque na mesma família, já é ponto totalmente fora da curva na estatística sobre escrevinhadores.
Rua Rui Barbosa, 83
Apto 1203
Servaz, li o textao e achei muito bao. Coloquei o fone de ouvido e escutei as músicas. Podia ter mais. Mais tarde conto, pelo laptop, bom teclado, pequena experiência minha…
Não aparece… desisto.
Mas meu carinho por você não desiste!