Entre a ideologia e o pragmatismo

Em um ano houve uma nítida mudança de rota na relação entre o governo Bolsonaro e a China. O presidente se elegeu dizendo que os chineses queriam comprar o Brasil e prometendo alinhamento automático com os Estados Unidos. O pragmatismo, contudo, falou mais alto, como evidenciaram a viagem ao país de Xi Jinping e o Brics-2019, realizado em Brasília.

O governo vive uma lua de mel com os chineses, que colocaram à disposição do país fundos de U$ 100 bilhões para novos investimentos. Jair Bolsonaro, por sua vez, não se dobrou às pressões de Donald Trump de excluir a chinesa Huawei do leilão do 5G, tecnologia que promoverá uma nova revolução nas telecomunicações. Esse bom momento nas relações levou o presidente a informalmente pedir desculpas aos chineses por suas declarações na campanha.

O pragmatismo com a China é o caso mais emblemático, mas não o único. Também em relação aos países árabes houve uma inflexão. A promessa de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém saiu da pauta e pontes foram estabelecidas com os árabes na viagem aos países asiáticos. No mesmo rol do bom pragmatismo insere-se o acordo entre a União Européia e o Mercosul. Justamente a UE que o ministro Ernesto Araújo enxerga como a quinta essência do “globalismo” criticado pelo próprio presidente em seu discurso na ONU.

Isso não quer dizer que a política externa brasileira livrou-se das amarras ideológicas. Elas estão mais vivas do que nunca e tumultuam as relações com a Argentina, o principal importador de bens manufaturados brasileiros e nosso terceiro parceiro comercial. Tudo porque o peronismo voltou ao poder no país vizinho. Por motivos ideológicos o presidente não foi à posse do novo presidente e ameaçou sair do Mercosul.

Mesmo o que foi a maior vitória de sua política externa – o acordo com a União Européia – pode ficar comprometido por sua visão distorcida em relação ao meio-ambiente e a neurose de ver como uma ameaça à soberania nacional as preocupações de países europeus com a Amazônia. Atritos com França, Alemanha e Noruega tiveram como pano de fundo visões anacrônicas e mais próprias dos tempos da guerra fria.

O maior dano do viés ideológico na política externa acontece na própria América do Sul. O Brasil abriu mão do princípio da não ingerência, de respeito da autodeterminação dos povos, para tomar partido em questões internas de outros países.

Renunciou da sua condição de liderança da região, capaz de costurar saídas pacíficas e negociadas, ao tomar um lado nos conflitos da Venezuela e da Bolívia. Enquanto a política ambiental nos condenava à condição de pária no concerto das nações civilizadas, o ideologismo da política externa nos transformou em atores secundários no nosso continente.

A política externa pendular entre o ideologismo e o pragmatismo foi reflexo da própria divisão no interior do bolsonarismo. A alma e o coração do presidente pendem para o núcleo ideológico de seu governo, do qual participam o ministro do Exterior e o clã familiar. Mas há um núcleo pragmático, do qual a ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias é a estrela em ascensão. Ela, com apoio dos militares e da equipe econômica, chama o presidente à razão.

Até quando essa política dual perdurará? Há um precedente histórico sobre o qual o presidente deveria refletir. Como tinha contado com o apoio dos Estados Unidos para a deflagração do golpe de 1964, o regime militar no seu primeiro governo adotou uma política externa de alinhamento automático com os Estados Unidos, a ponto do Brasil participar com tropas da intervenção militar na República Dominicana.

Paulatinamente esse alinhamento foi dando lugar a uma política externa mais soberana, cujo ápice foi o “pragmatismo responsável” da era Geisel e Azeredo da Silveira.

A vida costuma conspirar contra o ideologismo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 25/12/2019.

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