Marina dormiu aqui em casa na noite de sábado para domingo, pela segunda vez desde que ficou maiorzinha. Na casa dela, rolava festa pelo aniversário do pai.
Brincou um tempão com a minha velha Olivetti, na noite de sábado e na manhã de domingo.
Foi a primeira vez que ela viu a Olivetti aqui em casa, e ficou muito, muito tempo diante da máquina, brincando, apertando a tecla de espaço para ver o carro andar, apertando as teclas para ver os bracinhos das letras se levantando, apertando a tecla de fixar maiúscula para ver todo o conjunto subindo e descendo.
Impressionante: ela espalha todos os dedos sobre o teclado. Instintivamente, ou então talvez por ter observado muito a mãe usando o teclado do computador – a gente nunca vai saber –, ela não usa só os indicadores, e sim coloca toda a mão, e mexe com vários dedos ao mesmo tempo.
(A mãe usa todos os dedos para escrever, digitar, sentenciar, no teclado dela. Mérito dela, mas também meu. Quando ela estava com, sei lá, 16, 17 anos, botei minha filha numa escola de datilografia. Já era época da chegada dos computadores, e Fêzinha protestava contra esse negócio de mexer com máquina de escrever, mas insisti. Hoje com toda certeza ela reconhece que fiz bem: maneja com maestria o teclado.)
Por instinto, ou por observar a mãe, Marina ao brincar não catilografa com os indicadores: quase que datilografa como se tivesse diploma.
Eu estava tão apatetado com a presença dela aqui em casa para período mais longo, incluindo o pernoite, e com essa concentração dela diante da Olivetti, que tirei um monte de fotos, mas não tive a idéia de colocar as almofadas junto da mesinha da sala, para que se sentasse para brincar mais confortavelmente com a máquina. Quem fez isso foi a Cláudia.
Muito mais importante do que colocar as almofadas: foi a Cláudia que trouxe à baila a existência da máquina de escrever.
Lá pelas 19h, a gente já tinha brincado de várias coisas, inclusive de desenhar, quando Marina viu minha canetinha azul de digitar no celular, e pediu para brincar com ela. Dei a caneta, e ela pediu o celular. A avó já disse de cara que era pra brincar só um pouquinho, durante pouquinho tempo, e depois devolver para o vovô. Pensando em diminuir o estrago, produzi na sala o iPad, para trocá-lo pelo telefone.
Inteligente, esperta, rápida no gatilho, Cláudia falou que melhor seria se ela brincasse com aquela outra coisa que eu tinha contado que tinha em casa.
Cláudia já havia me mostrado fotos feitas no celular dela da Marina absolutamente encantada com uma máquina de escrever no Mamusca.
Aí então apareci com a Olivetti e a depositei na mesinha de centro.
Marina ficou mesmerizada com a Olivetti do mesmo jeito que fica mesmerizada com os DVDs prediletos.
***
Enquanto ela ficava ali brincando, Cláudia e Mary foram para a cozinha, preparar as coisas para o jantar. Eu tirava fotos, conversava com ela, às vezes empurrava o carro da máquina para a direita, pra ela ir dando os espaços e fazendo o carro andar para a esquerda.
Uma hora, disse para ela – claro que ela não entendeu bulhufas, mas eu disse assim mesmo – que foi com aquela máquina que eu trabalhei e ganhei dinheiro para criar a mãe dela. E ainda dei o exemplo: aquela máquina era para mim como o computador do estúdio do pai dela.
Cau e Mary vieram chamá-la para lavar as mãos e jantar, e ela não queria saber. Disse que estava brincando.
Isso não é incomum, de forma alguma. Marina em geral reclama na hora em que é chamada para lavar as mãos e jantar, porque esse chamamento sempre, necessariamente, interrompe uma brincadeira.
Cláudia argumentou com ela: a máquina ficaria ali esperando por ela; depois do jantar, ela continuaria brincando. Aceitou a argumentação rapidamente, e foi com a vovó lavar as mãos.
O jantar foi ótimo. Terminado o prato, ela disse que queria continuar brincando. E lá se foi de volta para a Olivetti.
Ficou lá um bom tempo.
***
Acordou no domingo super tarde para os padrões dela, depois das 8h. Ela acorda falando mais que camelô. Fala sem parar.
Mary levantou cedíssimo para nossos padrões, pouco depois de Marina. Me contou depois que Marina falava, falava, e cantava. Falava, falava, e cantava.
Cantou “era uma casa muito engraçada”, aquela do Vinicius e Toquinho.
Mary contou pra ela o nome da Olivetti – máquina de escrever do vovô.
Sentou-se novamente diante da Olivetti. Pegou a ovelhinha – ela adora a ovelhinha que é peso de porta no nosso quarto – e contou para ela: – “A Marina está trabalhando. A Marina está escrevendo na máquina de escrever do vovô.”
***
Não vi nem ouvi a conversa dela com a ovelhinha, porque fiquei na cama mais um tempinho – até que ela foi me acordar para me chamar para ir ao parquinho. Mas vi e ouvi, na noite do sábado, Marina identificando, no teclado da minha velha Olivetti, diversas letras.
A Cláudia perguntou, por exemplo, qual era a letra de Cau e de Carlos, e ela apontou. A letra de Marina e de Mary. A letra de vovó e vovô. A letra de Fernanda. A letra de Sérgio. A letra de Eli, da Elisete.
Mais tarde, na hora de ouvir historinhas antes de dormir, contou objetos até oito, de maneira firme – umas três vezes.
Detesto ficar medindo, comparando, fazendo hipóteses a respeito de inteligência de crianças – até porque, como sabemos, não há uma inteligência, e sim várias, diversas, uma para tipo de coisa. Tenho imenso horror a tudo isso. Não tenho idéia como estão as demais crianças dessa idade, nem quero ter, mas me assusta um pouco que Marina, aos 2 anos e 4 meses, já saiba identificar corretissimamente as letras C, M, V, F, S e E e conte corretissimamente de 1 a 8.
Deve ser absolutamente normal, hoje em dia. Os meninos de hoje são todos assim. Apesar de saber disso, de fato fico um pouco assustado.
Felizmente, no entanto, há motivos de sobra para ficarmos todos tranquilos. Marina não está sendo incentivada a se fixar nas telas – de celular, de TV, de computador, de iPad. Muito ao contrário, a política de pai e mãe é de controle estrito: pouco tempo, tempo regrado, por enquanto, para telas, já que as telas são inevitáveis, e então não é necessário incentivo dos pais desde já.
E Marina brinca.
Não terá trauma por falta de brincar.
Outro dia o Estadão deu matéria com educadores preocupados com a pressão dos pais para as crianças aprenderem, estudarem, curso disso, curso daquilo, luta, ginástica, línguas, desde pequenininhas, e não sobrar tempo para brincadeiras.
Marina brinca. Nossa, como brinca. Nem no meu tempo, quinquilhões de anos atrás, se brincava tanto.
Maravilha. MaraFilha, MaraNeta.
26/7/2015
As fotos são minhas, com exceção da primeira, do alto, da Mary, e desta última, de autoria de Suely Rossanez, a mãe dessa criatura extraordinária.
As fotos são lindas e Marina datilógrafa é um baratinho. Uma beijoca estalada nela. MH