Meus discos: See What Tomorrow Brings

O primeiro disco que comprei na vida foi See What Tomorrow Brings, de Peter, Paul and Mary.

O LP, o quinto do grupo, é de 1965, e comprei em junho de 1966.

Interessante título de primeiro disco comprado por um pivete de 16 anos, com todos os amanhãs pela frente.

“See what tomorrow brings” é um verso da canção “Betty & Dupree”, a segunda faixa do disco, música tradicional, de domínio público, folk, do folclore, como tantas outras dos primeiros discos de Peter, Paul and Mary e também de Joan Baez, assim como do primeiro de Bob Dylan. O crédito no selo do bolachão preto com um buraco no meio era: “Adapt. & Arr. By Yarrow-Stookey-Travers-Okun”. Ou seja: adaptação e arranjo de Peter Yarrow, Noel “Paul” Stookey, Mary Travers, os três cantores, e mais Milton Okun, o diretor musical dos primeiros discos do trio.

Como tantas outras canções da tradição folk, “Betty & Dupree” conta uma história trágica. As músicas tradicionais que os americanos herdaram da tradição oral da Inglaterra e da Irlanda têm mais tragédias do que Shakespeare ou a Bíblia: falam de estupro, roubo, assalto, traição, assassinato por vingança, prisão, enforcamento.

“Betty & Dupree” conta uma história de amor que deu errado. A letra é como um pequeno conto: há versos ditos por um narrador, versos em que Betty fala, versos em que Dupree fala. Betty e Dupree estão apaixonados um pelo outro. Ela pede a ele um anel de diamante, ele assalta uma joalheria, a polícia chega, ele mata dois policiais, é preso, vai para o corredor da morte. Betty não consegue vê-lo antes da execução.

O refrão diz: “Lie down, Betty, see what tomorrow brings. May bring you sunshine, may bring you a diamond ring. But if you you’re your man, it won’t bring you anything”.

(Calma, Betty, veja o que o amanhã traz. Pode trazer a luz do sol, pode trazer um anel de diamante, mas se você perder o seu homem não vai trazer coisa alguma.)

Não achei a gravação no YouTube. Há diversas outras, mas não a de Peter, Paul and Mary, nem a de Harry Belafonte, que eu só iria descobrir muito depois.

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Há mais tragédias folk no disco. “Hangman” conta a história de um sujeito que está para ser enforcado; ele pergunta ao pai, à mãe e ao irmão, que chegam perto do lugar da execução, se eles vieram libertá-lo, e todos dizem que não, que estão ali para ver sua morte. Finalmente chega seu grande amor, e ela diz que sim, que pagou a fiança, que veio para libertá-lo.

O título de “Brother (Buddie), can you spare a dime?” já diz tudo. O narrador é um mendigo, um sujeito que perdeu tudo na vida, e pergunta para o passante se ele pode abrir mão de uns centavos.

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Mas nem tudo é tragédia, claro, em See What Tomorrow Brings. Há um hino à solidariedade entre as pessoas, pelo fim de qualquer tipo de escravidão e racismo (“Because all men are Brothers”, uma adaptação do trecho de uma cantata de Johann Sebastien Bach), duas alegres brincadeiras (“Tryin’ to win” e “On a desert island (with you in my dreams)”). (Mais tarde, o trio faria bela gravação de “Because all men are brothers” com o Dave Brubeck Quartet.)

E há três maravilhosas, espetaculares canções de amor. “The first time ever I saw your face”, do respeitado inglês Ewan McColl, vem numa versão belíssima – que, curiosamente, evita a referência a sexo contida na gravação, também fantástica, de Roberta Flack. São três estrofes, que se iniciam com “a primeira vez que vi seu rosto”, “a primeira vez que beijei sua boca” e “a primeira vez que segurei você perto de mim”. Na versão de Roberta Flack, a terceira estrofe diz “a primeira vez que me deitei com você”.

“The last thing on my mind”, do jovem Tom Paxton (grande Tom Paxton!), é o lamento de um amante que traiu a campanheira e agora sabe que ela vai deixá-lo. Ele se arrepende, mas é tarde demais. O próprio grupo faria uma regravação da bela música em 1990, no disco Flowers and Stones. (Não achei a versão de PP&M no YouTube. Aqui vai uma do garoto Tom Paxton, em 1966.)

E há ainda “Early Morning Rain”, do também jovem Gordon Lighfoot (éramos todos, todos jovens), sobre um amante que foi abandonado e se sente a poeira do cocô do cavalo do bandido, com um gosto de guarda-chuva na boca. “In the early morning rain with a dollar in my hand and an ache in my heart and the pockets full of sand, I’m a long way from home and I miss my loved one so, in the early morning rain, with no place to go.”

(Embaixo da chuva de manhãzinha com um dólar na mão e uma dor no coração e os bolsos cheios de areia, estou muito longe de casa, e tenho uma saudade danada do meu amor, embaixo da chuva de manhãzinha e nenhum lugar para onde ir.)

Naquele mesmo ano de 1965, Judy Collins também faria uma gravação de “Early Morning Rain”. E, em 1970, em Self Portrait, um disco que deixou todos os seus fãs perplexos, sem entender coisa alguma, Bob Dylan gravaria a música também. Gordon Lightfoot deve ter tido uma das maiores alegrias da vida quando ouviu Dylan cantar sua canção.

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Pô, é um belo disco, constato agora, pela bilionésima vez na vida, ao ouvi-lo de novo e falar sobre as canções que tem.

É uma bela capa, alegre, ensolarada – uma mulher de cabelos longos de mãos dadas a dois homens caminhando na areia de uma praia. Um suave toque de Jules et Jim. A capa foi desenhada pelo Push Pin Studios, do célebre designer gráfico Milton Glazer, o sujeito que bolou o logotipo do grupo, que escolheu o corpo usado no nome Peter, Paul and Mary em praticamente todos os discos.

O disco original, lançado nos Estados Unidos, tinha um longo texto na contracapa, como se usava fazer, nos anos 1960 – as liner notes, como se diz em inglês, algo que, creio, não tem tradução exata. O texto vem sem assinatura, o que é estranho para um grupo que teve o privilégio de ter as liner notes do terceiro disco, In the Wind, de 1963, assinadas por um jovem (éramos todos, todos jovens) Bob Dylan.

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A edição brasileira de See What Tomorrow Brings, lançada pela Odeon, que na época representava o selo Warner Bros. aqui, é bastante fiel à original. A ordem das músicas é exatamente a mesma – algo simples, lógico, básico, mas que na época não era regra. Os primeiros discos dos Beatles lançados no Brasil (assim como os lançados nos Estados Unidos) não eram idênticos aos originais ingleses – muito ao contrário, eram colchas de retalhos. (Aí ao lado, minha moeda número 1 tal como está hoje.)

Há um texto na contracapa – não é a tradução fiel do texto original, e sim uma adaptação, bem mais curta.

O texto original começa assim: “Os Beatles viraram folk, Bob Dylan virou pop, os jovens barbados de cabelos longos e jeans estão curtindo os Rolling Stones.”

Era 1965. Os Beatles tinham gravado Rubber Soul, que realmente tinha coisas próximas do folk, e Dylan tinha se eletrificado em Bringin’ it all back home e Highway 61 Revisited.

“Nesta era de nova eletricidade musical” – prossegue o texto -, “Peter, Paul and Mary ainda tocam seus violões e misturam suas emoções vocais para uma audiência não menor e com não menos contágio de excitação”.

“A questão com PP&M é que, embora eles mantenham seu respeito pela tradição do folk, eles foram concebidos na contemporaneidade e permanecem uma parte vital dela. Seu sucesso e sua grandeza cresceram, não devido à sua habilidade de dizer o que o resto de sua geração está tentando dizer, mas à sua habilidade de dizer as coisas de maneira melhor do que qualquer outro.”

E mais adiante:

“A mensagem deles é a mesma de qualquer artista através dos séculos, um sermão de verdade e beleza no contexto de seu tempo. E o fato de que PP&M podem apreciar os Rolling Stones e mesmo os Beatles é uma prova adicional de que PP&M estão em contato com seu tempo. Os Beatles, incidentalmente, os chamam de Pizza, Pooh e Magpie. ‘Vamos encarar as coisas’, Peter disse um dia, jogando suas mãos no ar como se tivesse uma arma nas suas costas: ‘A mágica deles é maior do que a nossa mágica’. Talvez seja verdade, mas não faz diferença alguma. PP&M não estão falhando em ser Beatles, eles estão tendo sucesso por ser PP&M. Cada álbum que eles gravaram até agora chegou ao alto das paradas de sucesso,  e com este álbum vai ser a mesma coisa. Seja qual for a mágica que os Beatles têm, não retira a qualidade da mágica de PP&M. E se você não acredita em mágica, como é possível que você esteja segurando esta capa de disco em suas mãos neste momento?”

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Hêhê. As liner notes do disco podem ter ficado velhas. O disco não envelheceu.

Toda essa discussão sobre o acústico de um lado e o eletrificado de outro – que tomou tanto espaço naqueles meados de anos 1960, inclusive no Brasil, com Elis Regina organizando passeata contra a guitarra elétrica – ficou para trás. Felizmente.

Era uma discussão bocó, besta, babaca, pura perda de tempo. Como discutir sobre o sexo dos anjos, ou dar importância à virgindade, como se dava naquela época.

No texto da contracapa do disco de estréia, de 1960, Joan Baez falava que o violão acústico era sua “única e fiel orquestra”. Bobagem. Depois ela foi eletrificando o acompanhamento, e sempre foi maravilhosa, acústica ou elétrica.

Mais ainda: já no seu disco seguinte, Album, lançado em 1966, exatamente o ano em que comprei See What Tomorrow Brings, Peter, Paul and Mary vinham com belíssimos acompanhamentos de diversos instrumentos – piano, baixo, bateria, órgão, clarinete, flautas. E mais seus maravilhosos violões, e as mesmas harmonias vocais fantásticas, excepcionais. Únicas.

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Outro dia tive a idéia de fazer uns textinhos sobre alguns discos que para mim são especiais. Não propriamente sobre os discos, mas sobre minha relação com eles. Quando falei disso pra Mary ela deu uma gargalhada, que parecia expressar algo do tipo “tudo pra você agora vira texto”, para usar a expressão criada pela minha filha. Fiquei um tanto ofendido, e emendei que seriam textos curtinhos. A segunda gargalhada foi maior que a primeira.

Não entendo qual é a graça de eu dizer que vou fazer textinhos curtinhos.

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Faltou dizer que comprei See What Tomorrow Brings com o primeiro salário que recebi na vida.

No início de 1966, por questões que não cabem relatar aqui, senão vão dizer que escrevo demais, meus irmãos mais velhos determinaram que eu tinha que sair de Belo Horizonte e ir morar em Curitiba. Fiquei lá exatos dois anos – 1966 e 1967 –, antes de me mudar para São Paulo para ver finalmente what tomorrow brings. Tinha feito o primeiro ano do clássico no Aplicação em Belo Horizonte; no Colégio Estadual do Paraná, o predião imponente perto do Passeio Público, fiz o segundo e o terceiro anos do que lá eles chamavam de CS, Ciências Sociais. No meu primeiro ano lá, surgiu uma oportunidade para trabalhar alguns meses, acho que cobrindo férias de alguém, na secretaria do ICBEU, Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, num belo prédio da Boca Maldita, junto da Praça General Osório. Foi uma imensa sorte, porque, além de ganhar um salarinho, ainda pude me inscrever de graça numa classe do ICBEU.

Do primeiro salarinho saíram os cruzeiros para comprar See What Tomorrow Brings. Não me lembro mais exatamente em que loja foi, mas serguramente era uma das Brunetti Discos da Rua 15.

Obviamente, tenho o LP até hoje. Dá para tocar no Technics, mas vai ter mais ruído do que música. A gente ouvia os primeiros LPs até quase furar o vinil.

Novembro de 2012

9 Comentários para “Meus discos: See What Tomorrow Brings”

  1. História e texto delicioso. E que fique consignado: para o autor, é um texto curto. Curtíssimo.

  2. Veja o que o amanhã traz.
    Valeu a dica.Boa a idéia de fazer textos e comentários sobre discos que marcaram época. Boa sacada também de trazer reminiscências de fatos, lugares,pessoas. O Brant faz isso com grande suavidade. Dei uma escutada em “The Last Thing on My Mind” e “Early Morning Rain” boas canções das quais não me lembrava. Ah..ia me esquecendo, gostei da traduções.
    Fui salvo esta semana! Nem tudo são más notícias.

  3. Boa, Elói! Bela lembrança. Eu não sabia que o Elvis tinha gravado a música.
    Um abraço!
    Sérgio

  4. Nossa, delícia ler, obrigada.
    Agora vou procurar todas as referências, pra ouvir. Dias animados!

  5. Uma aula de eloquência e informação para um sujeito (este seu amigo) que naquela época ainda ouvia Elvis e Glenn Miller! Se existisse hoje, seguramente compraria o disco.

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