Gordon Lightfoot

A melodia é suave, doçamarga, delicadíssima, e os versos são de uma beleza estonteante, cheios de imagens gostosas como o carinho da pessoa que se ama.

“In the early morning rain with a dollar in my hand

With an aching in my heart and my pockets full of sand

I’m a long way from home, Lord, I miss my loved ones so

In the early morning rain with no place to go.”

Claro, óbvio, perde-se a maior parte da beleza quando traduzida, ainda mais por um sujeito que não entende absolutamente nada de poesia, mas, diabo… Na chuva de manhã cedinho, com um dólar na mão, uma dor no coração e os bolsos cheios de areia, estou longe demais de casa, Senhor, e sinto tanta falta das pessoas que amo, na chuva de manhã cedinho sem ter lugar nenhum pra onde ir.

Aquele estranho sujeito que eu fui em uma antiga outra vida, um adolescente de 16 anos de idade que se sentia longe de sua cidade, tendo sido deportado de lá contra a vontade, ouvia “Early Morning Rain” sem parar – e, diacho, continuei ouvindo  ao longo de todas estas mais de cinco décadas, através de todas as encarnações, perdão, encadernações. (Jornalista não reencarna, reencaderna.)

Só vim a saber agora, no entanto, que “Early Morning Rain” começou a ser criada por causa de lembranças que Gordon Lightfoot tinha de uma temporada em que esteve em Los Angeles, em 1960, aos 22 anos. Houve momentos em que, solitário, com saudades de sua terra natal – ele é de Orillia, Ontario –, o garotão canadense ia passear perto do aeroporto de Los Angeles, para ficar observando os pousos e decolagens.

Há mais de meio século adoro “Early Morning Rain”, mas só agora, momentos atrás, li isto aqui na Wikipedia:

“As imagens dos aviões decolando ainda estravam com ele quando, em 1964,  estava cuidando de seu filho de cinco meses e pensou: “Vou botar ele aqui no berço e escrever uma canção. ‘Early Morning Rain’ foi o que resultou.”

***

O próprio Gordon Lightfoot só gravaria a bela canção em 1966, em seu primeiro álbum, Lightfoot. Antes, em 1965 Peter, Paul and Mary gravaram a música em seu álbum See What Tomorrow Brings, o quinto da carreira deles – e o primeiro disco que eu comprei na vida, a moeda número 1 do sujeito que viria a ser um colecionador compulsivo de discos. Já até escrevi sobre este álbum, especificamente, aqui no 50 Anos de Textos; comprei com o dinheirinho que ganhei no que foi o meu primeiro emprego, como assistente de ajudante da secretaria do ICBEU, o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, que funcionava no primeiro prédio da Rua XV, junto da Praça General Osório. Durante uma boa parte dos meus dois anos em Curitiba, aquela cidade gracinha, civilizadíssima, eu me sentia deslocado, degredado, com saudade de Belo Horizonte – tudo a ver com uma canção que fala sobre um lugar distante em que “there the morning rain don’t fall and the sun always shines”.

Eu já estava na cidade que escolhi para viver, esta metrópole monstruosa que por coincidência ou não fica entre Belo Horizonte e Curitiba, quando “Early Morning Rain” recebeu aquela que seria a maior homenagem que uma canção poderia almejar: ser gravada por Bob Dylan, o sujeito que gravou bem poucas canções dos outros, ao longo de sua carreira gloriosa de uma quantidade de discos que não acaba nunca.

Dylan gravou a canção de Gordon Lightfoot em Self Portrait, o álbum duplo de 1970 em que ele tentou, desesperadamente, dizer ao bando radical dos fanáticos que o seguiam como a um Messias que ele não queria guiar ninguém, chefiar movimento algum, desfraldar bandeira alguma. Boa parte da crítica e boa parte dos fanáticos detestaram Self Portrait, uma beleza, uma maravilha de disco. Para ele Dylan escolheu cuidadosamente canções Gordon Lightfoot, Gilbert Bécaud (sim, “Let it Be Me” é uma versão de música de Bécaud), Paul Simon e o casal Felix e Boudleau Bryant, autores dos maiores sucessos dos Everly Brothers.

***

Antes de Dylan gravar “Early Morning Rain”, e com isso avalizar Gordon Lightfoot como um grande compositor (como se ele precisasse disso…), o canadense lançou, em 1968, o seu terceiro álbum, que tinha, no título, a canção mais redondinha da safra, aquela que vem tão perfeita que é impossível não fazer sucesso. “Did she mention my name?” era o título. Meu Deus, que maravilha de canção!

É daquela estirpe de canções em que o narrador se dirige a um conhecido, um amigo, para falar de uma terceira pessoa – a pessoa que o narrador ama, e que não vê há muito tempo. Segue a tradição de uma folk song que é tão antiga que não se sabe o nome do seu autor, e portanto ele aparece como “Trad”, de “traditional”, “Scarborough Fair” . “Are you going to Scarborough Fair? Parsley, sage, rosemary and thyme. Remember me to one who lives there For once he was a true love of mine;” (Baita compositor, esse tal desse trad. Dos melhores que há. Do mesmo nível de um Dylan, um Chico, um Caetano, um Moustaki, um Endrigo.)

“Did she mention my name?” tem assim o frescor, a inocência, a adolescência de canções de Buddy Holly, dos Beatles quando bem jovens, da Jovem Guarda brasileira, das cantoras européias jovens demais dos anos 60, tipo Dusty Springfield, Sylvie Vartan.

Um trechinho:

“It’s so nice to meet an old friend and pass the time of day

And talk about the hometown a million miles away

Is the ice still on the river? Are the old folks still the same?

And by the way, did she mention my name?”

É tão bom encontrar um velho amigo e passar um tempo junto, falar sobre a cidade natal, a um milhão de milhas daqui. Ainda tem gelo no rio? O pessoal continua o mesmo? E, por falar nisso, ela mencionou meu nome?

Ahnnn…

         ***

“Gordon Meredith Lightfoot Jr. (17 de novembro de 1938 – 1º de maio de 2023) foi um cantor, compositor e violonista canadense que teve sucesso internacional no folk, folk-rock e música country”, define a Wikipedia. “Ajudou a definir o som do folk-pop dos anos 1960 e 1970. É tido como o maipr compositor popular do Canadá e suas canções têm sido gravadas por alguns dos mais renomados artistas do mundo. Segundo seu biógrafo, Nicholas Jennings, ‘seu nome é sinônimo de canções eternas sobre trens e naufrágios de navios, rios e estradas, amantes e solidão’.”

Uma boa abertura de verbete. Acho que Lightfoot aprovaria – embora com toda certeza contestasse a coisa de “o maior compositor popular do Canadá”. Como assim, meu?, ele seguramente diria? E o Leonard Cohen? O Neil Young? O Ian Tyson? A Joni Mitcell?

1938… Estava portanto com 84 anos – faria 85 em novembro.

1938… Quatro anos mais novo do que Leonard Cohen, que era de 1934. Um pouquinho mais velho do que aquele bando de ídolos meus que nasceram no começo dos anos 1940. Dylan, Art Garfunkel, Joan Baez, Paul Simon (todos eles de 1941), Caetano, Gil, Kate Wolf, Milton Nascimento, Nara Leão, Paul McCartney, Paulinho da Viola (todos de 1942).

Assino dois jornais, vejo os sites deles na internet ao longo do dia, mas só fiquei sabendo da morte de Gordon Lightfoot quatro dias depois.

Foi embora de um jeito suave como sua música.

Que os anjos tratem muito bem dele.

5 e 6/5/2023

Algumas canções no YouTube:

Early Morning Rain” com o autor, em 1969;

“Early Morning Rain” com Peter, Paul and Mary, em 1966; 

“For lovin’ me”, com Peter, Paul and Mary, em 1965; 

“Did she mention my name? com o autor, em 1968;

“If You Could Read My Mind” com o autor. 

 

 

 

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