A Espécie Humana. Capítulo 39

percebi aos poucos que nenhum de nós conseguira dormir. de vez em quando alguém se mexia. meu pai era o mais discreto. finalmente, o menino:

pai!

oi, filho. não consegue dormir?

não.

também, você dormiu o dia inteiro, né?

não, não dormi o dia inteiro. foi esquisito. nem dormia, nem pensava. vô!

oi.

eu queria continuar conversando.

pois então, o que quer perguntar?

como é que as pessoas inventam essa coisarada toda? o pássaro da morte, esses céus diferentes, esse vai e volta da alma…

bem, quase todas as religiões são ensinadas a uma pessoa especial. o Deus deles vem e fala tudo.

é do mesmo tempo em que os bichos falavam?

quem sabe?

mas você sempre conta as coisas do seu jeito. como é que você explica isto tudo?

pois bem, vou acender o lampião e ler um trecho de um romance. e isto fez meu pai. acendeu o lampião e pegou um de meus livros. e continuou:

houve um escritor russo que era epilético. sabe o que é um epilético?

sei. a pessoa tem ataques.

isso. espere um pouco. folheou o livro. então, ouça o que vou ler. em um romance, o escritor escreveu o que ele sentia antes de ter o ataque. e leu:

A sensação de vida, de consciência plena, era multiplicada por dez mas durava um piscar de olhos. A mente e o coração são inundados por uma luz extraordinária; os medos, as dúvidas, as ansiedades, tudo é deixado de lado. Tudo se resume numa calma cheia de serenidade, harmonia, alegria e esperança. Muita razão e compreensão. Neste instante, parece que eu compreendo a frase extraordinária do apóstolo: findou o tempo.

silêncio.

conseguiu entender?

assim assim. uma porção de coisas boas.

então. e de repente ele tinha o ataque e, quando voltava a si, ficava sabendo que tinha ficado horas ou mesmo dias fora de si. esta maneira de sentir fora do normal das pessoas acontece com alguns doentes ou por efeito de alguns remédios. nosso cérebro tem substâncias que, conforme a quantidade maior ou menor, fazem a gente sentir o mundo de um jeito que não é normal. fora isso, algumas pessoas são loucas, ouvem vozes, vêem coisas…

então são doentes ou loucos ou estão com remédio?

isto seria o modo simples de explicar. não são pessoas normais como a gente. percebem o mundo de maneira diferente. e vão falando e contando. às vezes escrevendo…

resolvi interferir: algumas pessoas têm poderes que a maioria não tem. algumas adivinham o futuro… e o menino:

algumas descobrem metais…

… e por aí afora.

silêncio.

é muito confuso?, perguntei. e o menino:

nem sei.

silêncio.

é, acho que estou com sono, falou o menino. meu pai apagou o lampião. após um longo tempo em que ninguém se mexia, interpelei meu pai.

pai!

risos. você também?

sim! não seria possível que estes visionários, estes que têm alterados os seus estados mentais, doentes, com tumores no cérebro, drogados, esquizofrênicos, não poderia dar-se que eles tivessem de fato contato com o mistério e tivessem acesso à verdade? exatamente por causa desta percepção alterada, alteração que também poderia acontecer por um excesso de fé? mortificações e jejuns, lembra-se do Céu e Inferno, de Aldous Huxley?

bem, isto seria de fato possível. mas veja, por que, então, a verdade é tão diferente?, conforme o lugar e a época! essa revelação partiria do material do inconsciente coletivo ou do inconsciente individual? de qualquer maneira, se houve contato com a verdade, as conclusões deveriam ser idênticas.

e o menino, de repente:

vovô!, por que os egípcios nunca fizeram um deus com cabeça de tatu?

meu pai: aí está a tua resposta. vamos dormir.

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Leia o capítulo anterior.

Para ler a partir do capítulo O.

Continua na semana que vem.

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