A Espécie Humana. Capítulo 38

estamos deitados, cada um no seu colchão. temo que o menino não durma logo porque hoje, ao contrário da tarde de ontem, quando ele ficou perambulando com os cães, hoje ele dormiu praticamente o dia inteiro. comeu em horas erradas e não falou absolutamente nada. abria os olhos, levantava-se, ia ao banheiro, olhava pela janela, diversas vezes olhou para o lugar onde Kamala fora queimada, parava em frente à mesa onde deixei frutas e biscoitos, uma vez ou outra comia, voltava às almofadas da sala e se cobria. eu fingia que não o vigiava mas procurava estar sempre por perto.

quando eu e o pai tomávamos a sopa, ele levantou-se.

pai, você acende o álcool pra eu tomar banho?

sim. vai querer sopa?

acho que vou.

vamos ao banheiro.

e depois do banho ele jantou. apesar do silêncio, havia uma tranqüilidade doce em torno de nós. meu pai pegou um livro, eu peguei outro. o menino subiu e voltou com o volume do Museu Egípcio de Cairo. folheava lentamente, às vezes voltava páginas e recomeçava.

e agora estamos deitados. eu e meu pai esperamos uma pergunta. eu tenho uma suspeita e juro que meu pai sabe ao certo a pergunta que virá.

oi.

eu não disse que ia fazer uma pergunta?

sim. eu estou esperando.

longo silêncio.

pra onde que a gente vai depois que morre?

meu pai sentou-se na cama.

vou reacender o lampião. gostaria que fosse mais uma conversa do que um discurso.

no entanto, ele não abriu toda a luz, criando apenas uma penumbra amarelada.

pra onde que a gente vai depois que morre? indagou num outro tom. pois então! há tanta coisa pra se falar! se eu não usasse o cérebro que tenho e repetisse as fórmulas que estão disponíveis em volta da gente, eu falaria a mais tola: a gente vai pro lado do papai do céu. mas essa bobagem não diz nada. então, menininho, prepare-se pra ouvir.

os antigos tinham suas crenças e nós modernos temos as nossas. vamos viajar; não estou seguro quanto a tudo que vou falar:

para os egípcios a alma do morto ia para o tribunal de Osíris. após ter falado de suas virtudes, seu coração era pesado. a alma deles devia ter coração. os culpados eram devorados por um monstro ou iam para um lugar onde passavam fome e sede. os bons iam para o reino de Osíris: lagos, lírios, florestas, frutas abundantes e muita caça.

coisas que não existem no deserto, né?, vovô.

exato. mas nem todos os povos antigos imaginavam estes julgamentos para bons e maus. para muitos deles, as almas ficavam num mundo de sombras até desaparecer. os gregos, por exemplo. algumas lendas imaginavam punições para criminosos da mitologia mas o povo em geral não se preocupava com tais julgamentos.

as almas dos astecas iam para lugares diferentes, dependendo do tipo de morte: doença, assassinato, guerra, afogamento, cada morte tinha o seu outro-mundo.

na antiga Pérsia, a alma deve esperar nove mil anos para o fim do mundo. então, o fundador da religião, Zoroastro ou Zaratustra, chegará e com a virgem Hvôv vai ter o Messias Saoshyant. esse Messias vai enaltecer o bem e o deus Ahura-Mazda vencerá Ahriman, a força do mal. os mortos vão se levantar das tumbas e serão julgados. para os bons bem-aventurança e para os maus as chamas do inferno. só que esse inferno será temporário, eles não eram muito sádicos.

agora vamos falar de uma crença mais fantasiosa. para algumas tribos do centro-oeste africano, as almas dos homens bons ficam na aldeia durante as festas fúnebres. depois ouvem o canto do Ngofio-Ngofio, o pássaro da morte. engordam, engordam e morrem para sempre. os maus não ouvem o pássaro e ficam assombrando os vivos durante a noite. quando morre o último ser humano que eles conheciam, só aí eles ouvem o Ngofio-Ngofio e vão para o Totolan, a casa das trevas, onde há gemidos e lamentos.

os budistas e os hinduístas dizem que há reencarnação. a alma do morto, depois de um tempo, volta para outra criança que vai nascer. assim, a cada encarnação, ela se aperfeiçoa até atingir um tipo de felicidade eterna de uma mente iluminada.

os espíritas do ocidente têm destino semelhante para a alma humana.

para os cristãos, os judeus e os muçulmanos, há um pequeno julgamento após a morte e depois um tipo de juízo final. para os judeus será no advento do Messias. e, após o julgamento último, céu e inferno, cada um do seu jeito. hoje em dia os cristãos falam que aqueles capetinhas com garfo são um tipo de símbolo para significar a ausência de Deus. estou meio que simplificando a coisa.

finalmente, para algumas pessoas, o ser humano, depois de morrer, volta a ser o que era antes de nascer: nada.

silêncio.

vovô!

oi.

longo silêncio. o menino se enrolou mais no cobertor e veio pro meu colo. abracei-o e aconcheguei-o ao peito, cobrindo-o bem.

vovô!

fala!

eu posso escolher?

riso de meu pai.

e aí, o que é que eu posso dizer? você pode escolher aquilo em que quer acreditar. mas, e lá? quem é que vai saber?

silêncio. meu pai mudou de tom. perdeu aquele jeito de professor e fez como que uma reflexão em voz alta.

na verdade… na verdade uma destas crenças pode ser verdadeira. mas não todas. ou todas estão erradas, menos uma, ou todas estão erradas, sem salvação. ou existe reencarnação… ou não.

vovô, se o cristão morrer e chegar lá e descobrir que existe reencarnação, ele vai quebrar a cara!, né?

risos de meu pai. que continuou:

e se o espírita, que viveu a vida inteira pensando que tinha a eternidade pra aprender, se ele morre e chega lá e alguém diz: vai pra fila do julgamento. risos. vamos deixar de brincadeira. o trágico disto tudo é que não podem estar todas certas, estas crenças. ou uma apenas, ou nenhuma. ponto final. posso apagar?

por mim, pode, vô.

deixa que eu apago, pai. quer ficar aqui? durma, depois eu vou pra tua cama; falei pro menino.

depois que fui pro colchão dele, ele ainda falou:

vovô.

oi!

e os bichos?

para algumas das crenças, uma reencarnação pode ser em um animal.

longo silêncio.

vovô, témanhã. céu sem bichinho, vovô, não é céu.

ouvi Luluva se espreguiçando lá embaixo. a seguir fez um ruído como se fosse um bocejo.

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Leia o capítulo anterior.

Para ler a partir do capítulo O.

Continua na semana que vem.

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