levantei-me com o sol alto. como foi que consegui dormir tanto? os colchões onde dormem meu pai e meu filho estão com os lençóis e os cobertores dobrados. desço e encontro a mesa arrumada para meu café. vejo vazias as bacias dos cães, então já comeram. muito bem! hoje é um dia para atividades triviais, uma casa por limpar, roupa por lavar, depois a comida, mãos à obra!
quando estou distraído, molhando o gramado, ouço o grito do menino:
pai! pai! veja!
ele chega sem o velho, vem aflito e alegre, excitado e sorridente:
ela estava perdida no meio do mato e ficou com medo da gente! depois que fui dando pedacinhos de pão, ela foi-se chegando e agora fica no meu colo!
em seu colo uma minúscula cachorrinha, preta, quase sem pelo, magérrima, enormes olhos que não sabiam se se mostravam felizes ou apavorados. os olhos, os olhos enormes!… campo de concentração? aldeia africana?
tive que ralhar com os cães que nos rodeavam, eles também cheios de excitação, fungando e procurando. Aklia! Luluva!
põe ela no chão. como é filhotinha, os cachorros não vão atacá-la.
estou com medo!
os enormes dogues colocaram-se em círculo em torno da pequenina criatura que se urinou por inteiro.
estou com medo!, pai.
é melhor pegá-la de novo. mas veja, eles estão abanando os rabos. Caim!
mas ela, não.
vamos entrar. parece que tem frio, enrole-a nesse pano. sai, Luluva! saiam! Caim! sente-se aqui na almofada e deixe-a se aquecer no seu colo. vou colocar todos lá fora por um tempo. Ishtar! Lilith! Aklia!
quando ia fechar a porta, meu pai chegou.
a pobre criaturinha está mais morta do que viva.
vamos dar mais comida pra ela?, pai! falou o menino. é melhor não. falou o velho. a barriguinha até já estufou. quem sabe um pouco de carne moída mais tarde.
tendo saído lá fora, meu pai me seguiu e falou:
perto do lugar onde a encontramos havia três cadaverezinhos. não permiti que o menino os visse, quando eu os percebi, tomei um outro caminho.
entramos.
pai, ela pode dormir lá em cima?
não. vou arrumar uma caixa e colocá-la debaixo do fogão, que é bem alto.
e a cachorrada?
vão cheirar um pouco, depois dormem.
e foi assim que aconteceu.
de vez em quando ele puxava a caixa para olhá-la. os cães se chegavam e a pequenina, cheia de medo, encolhia o rabinho.
eu vou virar a caixa de lado e colocar tudo sobre um jornal. assim ela sai pra fazer xixi. vamos tomar um banho pra jantar?
meu pai falou: não vou jantar. vou descer até a ponte e passear durante um tempo.
quando saímos do banheiro a cachorrinha se aninhava entre as pernas de Luluva. se algum outro se aproximava, Luluva rosnava.
pronto, agora está tudo resolvido. ela vai dormir quentinha.
depois da janta, subimos.
deitados nos nossos colchões, o menino repetia a aventura do dia. explicava cada detalhe do encontro com a cachorrinha. ouvimos que o pai chegou. logo ele se deitava também.
pai, falou o menino, você já me explicou mas eu quero saber de novo. quem foi Luluva?
Luluva foi a irmã gêmea de Caim.
e Aklia?
Aklia foi a irmã gêmea de Abel.
e Ishtar?
Ishtar foi a deusa da fecundidade, fazia tudo nascer, plantas, animais e pessoas.
e Lilith?
hm, Lilith… depois que Deus fez Adão, surgiu uma linda mulher, Lilith, e ela dormiu com o primeiro homem. quando Deus chegou, ela virou um morcego e fugiu. por isso Deus fez Eva.
então, essas são as cachorras. e Caim? quem foi Caim?
antes que eu falasse, meu pai interrompeu:
Caim foi o primeiro crime de Deus.
silêncio.
meu pai, de novo: hoje dormimos sem música?
acho que sim, falei. há um lindo silêncio em torno de nós. e, para o menino: amanhã podemos escolher um nome pra tua cachorrinha.
já escolhi.
e pronunciou o último som da nossa noite:
Kamala.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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