Nasci para Bailar, 16º LP solo de Nara Leão em 18 anos de carreira, é uma perfeita seqüência do excelente Romance Popular, seu disco do ano passado (1981). Já naquele disco, Nara havia perseguido (e alcançado) um clima alegre, jovial, forte, cheio de energia e vitalidade. Nasci para Bailar prossegue a mesma linha, avança na mesma direção. E consolida essa nova imagem de uma Nara Leão mais solta, mais firme, mais segura de si, mais alegre e mais tranqüila hoje, aos 40 anos, do que aos 22, quando gravou seu primeiro disco.
Ela mesma tem dito, nos últimos meses, que sabe que canta bem, que tem bom gosto, que sabe escolher o que canta; que se sente renascida, jovem, e até mais bonita nas fotos recentes que em outras mais antigas, como a da capa do LP de 1978, … e que tudo mais vá pro inferno (“um clima meio desesperado, uma cara não se sabe se fugida do Pinel ou que vai se suicidar”). De lá para cá, Nara refez sua vida, agora como mulher desquitada; teve um problema neurológico até hoje não perfeitamente explicado, julgou-se bem perto da morte, mas recuperou-se, passa bem, se sente muito bem – e não só de saúde, mas bem com a vida e consigo própria. Os filhos (em troca dos quais abandonou por bons anos os palcos e as luzes dos refletores) estão crescidos, permitem que ela tenha mais espaço para se dedicar novamente à carreira.
Esses dados de sua vida servem apenas para explicar o clima alegre e solto que marcou o LP Romance Popular, e que este Nasci para Bailar confirma e amplia. De resto, o que explica que, como o anterior, este novo LP é um disco belíssimo, é apenas a competência.
A voz de estilo cool, intimista, sutil, anti-rasga coração, está inegavelmente mais à vontade, mais solta, ainda mais gostosa. Demonstração de que a cantora fascinante tem sabido usar as aulas de canto que está tomando (tem praticado uma hora por dia). Mais dona de si, mais técnica, neste Nasci para Bailar Nara fez questão, por exemplo, de fazer ela mesma, em duas faixas, a segunda voz.
Como sempre dona de uma intuição e uma sensibilidade raras, Nara fez este disco com um músico cujo estilo se casa perfeitamente com o seu, o maravilhoso Antônio Adolfo, responsável pelos arranjos de 11 das 13 faixas do LP (as outras têm arranjos de João Donato). Inteligente, sensível, o compositor e pianista não optou pela solução – tão comum, ultimamente – de encher os canais de gravação com massas pesadas de metais, sintetizadores, baterias eletrônicas ou quetais. Alegria não implica barulho – e Antônio Adolfo fez de Nasci para Bailar um insuperável e belíssimo trabalho basicamente acústico. “O tratamento acústico enjoa muito menos – diz ele. – Você nunca se cansa de ouvir um som de flauta”.
Que não se pense que haja aqui qualquer purismo, qualquer preconceito contra este ou aquele instrumento. Nara Leão já demonstrou, exaustivamente, em sua carreira, que não é artista que nega a novidade até que a novidade vire moda, e depois adere a ela. “A gente usou oberheim e efeitos eletrônicos – diz Antônio Adolfo. – Mas com uma certa parcimônia”.
A voz correta, agradável, suave, alegre, arranjos de bom gosto, bonitos, refinados, duráveis, que não enjoam. Nasci para Bailar tem todos esses ingredientes – como também tiveram os discos anteriores de Nara. E o mesmo ingrediente final que Nara tão bem soube usar ao longo de sua carreira está presente aqui também: a maravilhosa escolha do repertório. Mistura sons e estilos, cha-cha-cha, samba, calipso, marchinha de carnaval, bossa-nova, frevo. Sempre de qualidade. Há uma única regravação – “Pede passagem”, de Sidney Miller, que ela própria gravara em 1966. Das novas ou desconhecidas, não há nenhum momento fraco. Há, sim, momentos altos, brilhantes – especialmente as duas canções do maravilhoso cubano Silvio Rodrigues, traduzidas por Chico Buarque, “Supõe” e “Imagina Só”. Um disco para se ouvir muitas vezes, durante muitos anos. Beleza não cansa.
Uma observação em 2011
Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde, em 1º/10/1982.
Ao reler o texto agora, no início de 2011, para publicar no site, fico em dúvida sobre a frase “teve um problema neurológico até hoje não perfeitamente explicado”. Não consigo me lembrar com clareza absoluta se foi uma forma polida, uma decisão consciente de não mencionar o tumor cerebral, ou se eu não sabia dele. Tenho quase a certeza de que foi a primeira explicação – Nara, se não estou muito enganado, não admitia publicamente a gravidade da doença, e, assim, eu não poderia mencioná-la.
Quando este disco foi lançado, em 1982, Nara Leão já sofria do tumor cerebral maligno que, infelizmente, causaria sua morte, sete anos mais tarde. A faixa-título, “Nasci para bailar”, hoje soa como uma demonstração de que a cantora estava determinada a continuar lutando contra a doença fazendo o que melhor sabia fazer, ou seja, cantar. Ela ainda teria tempo de ser a primeira cantora brasileira a gravar um CD, “Garota de Ipanema”, realizado no Japão e lançado em 1986 (ironicamente no Brasil o álbum saiu na época no formato convencional de LP, pois nosso mercado de CDs ainda estava engatinhando na época). Descanse em paz, eterna musa da bossa nova!
A faixa-título deste disco é até hoje revivida em noitadas de salsa. E hoje soa como uma determinação de Nara Leão de, apesar de já doente, continuar a lutar pela vida fazendo o que melhor sabia fazer: cantar. E ela ainda teria tempo de ir ao Japão e ter o privilégio de ser a primeira cantora brasileira a gravar um CD, “Garota de Ipanema”, lançado em 1986 (ironicamente no Brasil o disco saiu em LP, pois nosso mercado de CDs ainda era incipiente). Nara será sempre Nara, pois é insubstituível.