Raimundo Fagner ainda não conseguiu vender mais discos do que Roberto Carlos – uma das muitas ambições do ambicioso cantor. Ainda não conseguiu chegar à marca de um milhão de cópias vendidas por disco – objetivo que ele pretendia alcançar já com o LP de 1980. Mas o cantor já bateu os seus próprios recordes, com este último Fagner, que teve 400 mil cópias pedidas pelos lojistas antes mesmo de o disco ser distribuído. Assim, antes do lançamento, o LP já havia ganho um disco de ouro e outro de platina.
Esse recorde está estreitamente vinculado a dois fatos. O primeiro é que o disco é uma superprodução, digna de um Cecil B. de Mille. A CBS não teve dúvidas em investir fortunas na elaboração do LP. Músicos como Lincoln Olivetti, Jamil Joanes e Manassés foram levados do Brasil até Nova York para a gravação das bases. Grandes nomes de brasileiros radicados nos Estados Unidos, como Airto Moreira, Flora Purim, Tânia Maria e Laudir de Oliveira, foram chamados para participar das gravações, assim como diversos músicos norte-americanos, entre eles os saxofonistas David Samborn e Michael Brecker. O estúdio usado, a um preço de Cr$ 40 milhões, foi um dos melhores do país mais rico do mundo, o Hit Factory de Nova York, com 48 canais de gravação – o mesmo em que foi gravado e mixado Double Fantasy, o último LP de John Lennon. Cuidados acessórios foram tomados para embalar o produto, como a inclusão de um pôster de mais de um metro de largura, com fotos do cantor ao lado de (entre tantos outros) Pelé, Sócrates, Falcão, Luísa Brunet, Zico, Leão, João do Vale, Rivelino e (agradecimentos especiais) Tomas Muñoz, o patrão de Fagner, presidente da CBS brasileira.
Como se trata de uma superprodução, os lojistas acreditaram na rentabilidade do produto, e deram a Fagner mais este recorde em sua carreira. O recorde e a superprodução, por sua vez, explicam e justificam o fato de que este Fagner é um LP fraco, possivelmente o mais fraco dos nove que ele já gravou em nove anos de carreira.
O repertório é, de uma maneira geral, pobre, confuso e mal alinhavado, misturando estilos que procuram agradar a todos os tipos de público. Os arranjos são convencionais, sem qualquer inventividade ou vigor. Tecnicamente perfeita, a gravação acaba se perdendo nas suas próprias características de superprodução. Como aqueles filmes que Hollywood de vez em quando produz, com dezenas de grandes astros em participações especiais que não duram mais que duas cenas. Assim, por exemplo, a faixa “Sorriso novo” (Fagner e Brandão) conta com a participação especial do brilhante Paco de Lucia; mas a maçaroca sonora criada pelo incansável Lincoln Olivetti praticamente encobre, soterra e anula a guitarra flamenca do grande instrumentista. Os igualmente brilhantes percussionistas Airto Moreira e Naná Vasconcelos foram igualmente abafados pela massa de metais e teclados do tão festejado arranjador.
E o que é pior ainda: o próprio Fagner aparece soterrado pela superprodução e pelo desejo de vender muito. Aquilo que o compositor/cantor tem de melhor – a garra, a força, a paixão, a capacidade de fugir do banal, a coragem de ousar com sua voz ríspida, arranhada, agreste e cortante como a dos cantadores de feira do seu Nordeste – perde, e muito, nesse seu esforço de agradar às platéias mais amplas, mais abrangentes, menos afeitas à novidade e à experiência. Invenção, criatividade e ousadia não cabem num projeto idealizado para atingir o gosto médio da grande maioria.
Nem tudo se perde, é verdade, no LP. “Qualquer música”, música de Ferreirinha sobre o poema retirado do “Cancioneiro” de Fernando Pessoa, o carro-chefe do LP, que já toca nas rádios até a exaustão, é gostosíssima e irresistível, embora (ou até porque) simples e fácil. “Sambalatina (Merengue)”, do próprio cantor, ainda apresenta um pouco da força que era, até há pouco, a marca registrada de Fagner. “Vapor do Luna”, de Bigodeiro e Fagner, tem um ritmo marcante. “Homem feliz”, uma letra descartável de Abel Silva, tem uma melodia consistente (embora pouco apropriada para a voz de Fagner), assinada pelo bom João Donato.
Pouco, muito pouco, se levar em consideração que Fagner soube criar outros discos bem superiores, como Manera, Frufru, Manera, Ave Noturna e Quem Viver Chorará. Pouco, muito pouco, quando lembra que há lojas cobrando até 1.800 cruzeiros por um LP.
Este texto foi publicado no Jornal da Tarde em 21/9/1982.
1.800 cruzeiros! O que será que era isso?