Uma mulher pode fazer tudo: pensar, falar, cantar, calar-se até de vez em quando. Foi o que me ensinou Sacha Guitry. Um povo não. Um povo cala-se, mesmo por um instante, e há um ruído quadrúpede a escavar as ruas, uma explosiva brancura a furar os tímpanos. Continue lendo “Casou-se alguém quando Salazar morreu?”
Foi contra tudo isto que lutámos
Passaram-se tantas coisas em Cannes. Houve um tempo em que ia lá todos os anos. Entre o festival de cinema, os grandes mercados de televisão, duas, três vezes ao ano, ali ao lado das encostas que Picasso, Calder, Fitzgerald escolheram para pintar e escrever. Continue lendo “Foi contra tudo isto que lutámos”
O coração numa bandeja
Mesmo alguém que não se chamasse Coelho estremeceria ao ouvir a voz melancólica de Pedro I, rei de Portugal, ordenar: “Preparem-me esse coelho que tenho fome.” Num conto de Os Passos em Volta, de Herberto Helder, um dos assassinos de Inês, Pêro Coelho, de joelhos entre os guardas, reconhece o direito de vingança do monarca e saboreia a ironia da frase real. Continue lendo “O coração numa bandeja”
Na sala ou na cama, chamava-se Slim
Howard Hawks transpirava charme. Ou seja, nunca precisou de transpirar. Nessa noite passeava-se pelo Clover Club e olhava para a pista de dança. Foi então que a viu. Continue lendo “Na sala ou na cama, chamava-se Slim”
A falta que lhe fez um filme americano
Nos tempos em que eu soletrava entusiasmado a indecidível ratatouille literária que é a prosa do filósofo Gilles Deleuze, apanhei-o a jurar que toda a história da filosofia mais não é do que um interminável conjunto de comentários ao diferencial que são os diálogos de Platão. Terá sido no “Difference et Répetition”?
Rosebud
Quando saiu das mãos de Orson Welles, Charles Foster Kane, megalómano, críptico, já era muito maior do que a vida. Lembro os menos cinéfilos que falo do herói de um filme, Citizen Kane. O próprio Welles interpreta a personagem que morre no começo do filme sussurrando, numa misteriosa saída de cena, a palavra rosebud.
Ulisses tinha um Austin A 40 Devon
O que se passa na sala de cinema devia ficar na sala de cinema.
Maureen O’Hara que o diga. Cansada de passar dos braços de John Wayne para os braços de John Wayne, sentou-se um dia no escuro do Grauman’s Theatre e inundou-a uma doce impertinência. Deslizou pelo homem que estava ao lado, não propriamente pelos braços. Continue lendo “Ulisses tinha um Austin A 40 Devon”
A sala de cinema é um antro de vício
O que é uma sala de cinema? Nos anos 50, um crítico francês, num sobressalto cognitivo, perguntava o que era o cinema. Não me vão ouvir dizer, com a certeza ontológica de um Medina Carreira, que era a pergunta errada. Continue lendo “A sala de cinema é um antro de vício”
O dedo grande do pé
“Eu hei-de mexer esse dedo!” Ainda ouço a voz do comandante “Spig”, deitado de borco numa cama de hospital. Fracturou a quinta vértebra cervical e a boca pequena dos médicos diz o que eles não lhe querem dizer. A paralisia bilateral não o voltará a deixar andar. Continue lendo “O dedo grande do pé”
A retaguarda europeia
A Europa não é só vanguarda. Também há uma retaguarda europeia. Em crónica anterior, contei os doze passos de Marilyn que revelavam redonda e inignorável parte dela e arrebatavam Tony Curtis, Jack Lemmon e um comboio, em Some Like it Hot. Recebi protestos e uma carta da Comissão Europeia. Continue lendo “A retaguarda europeia”
Onde está a liberdade?
Rossellini fez Dov’è la libertà, com Totò, o mais popular dos cómicos italianos. Totò é um barbeiro e, com navalha afiadíssima, deveria cortar o pescoço a um cliente porque o tipo, o melhor amigo, mas um mau carácter, tentara abusar da sua mulher, como ela, indignada, lhe confessara. Continue lendo “Onde está a liberdade?”
A fístula do rei
Quando Vitor Gaspar ou Passos Coelho anunciam novas medidas, naquele hiato que há entre a psicologia e a acção, será possível descobrirmos que tremem como varas verdes? Roberto Rossellini, que devia tremer como varas verdes à frente de Ingrid Bergman, fez desse instante incerto a inspiração de parte do seu cinema. Continue lendo “A fístula do rei”
Um corpo que carrega outro corpo
O esqueleto de Lincoln já não deve estar em condições para levar ninguém às cavalitas. Mas em Lincoln, o corpo que Daniel Day-Lewis empresta ao presidente suporta bem, às cavalitas, o peso do filho, Tad. Continue lendo “Um corpo que carrega outro corpo”
A estranha nobreza de “fazer”
Lincoln, de Steven Spielberg, é um superlativo elogio da prática da democracia, ou melhor, da sua “praxis”, como grita o recalcado marxista de 20 anos que, clandestino e bilioso, rumina nas profundas do meu fígado.
A mulher que não viveu nenhuma vez
Se o Jimmy Stewart (Scottie) de Vertigo é Orfeu, Orfeu somos todos nós ou é qualquer um. Orfeu amava tanto Eurídice que, desesperado com a morte dela, desceu aos infernos para a resgatar, tocando a sua doce lira. Correu mal, claro. Continue lendo “A mulher que não viveu nenhuma vez”