Casou-se alguém quando Salazar morreu?

Uma mulher pode fazer tudo: pen­sar, falar, can­tar, calar-se até de vez em quando. Foi o que me ensi­nou Sacha Gui­try. Um povo não. Um povo cala-se, mesmo por um ins­tante, e há um ruído qua­drú­pede a esca­var as ruas, uma explo­siva bran­cura a furar os tímpanos.

Ia escre­ver sobre o silên­cio no cinema. Coisa selecta movida a Tar­kovs­kis e Berg­mans. Mas olhei e vi que as intes­ti­nas angús­tias deles são pre­sun­ções esdrú­xu­las. Basta compará-las com a can­ção lacu­nar que Alain Delon incar­nava no mais belo e silen­ci­oso dos fil­mes, Le Samou­rai, de Jean-Pierre Melville.

E não é dos fran­ce­ses que quero falar. Esta é uma cró­nica romena, sobre um filme, Nunta Mută. Em por­tu­guês, tra­du­zido à minha maneira, Um Casa­mento de Silên­cio, e tra­du­zido como deve ser, mas eu não gosto, Casa­mento Silen­ci­oso.

zzzzzzzzzzzmanuel

Passa-se no ano em que nasci, por feliz acaso o ano em que Esta­line, Pai dos Povos, mor­reu, estava a Romé­nia sob ocu­pa­ção ideológico-colonial sovié­tica. A acção decorre numa aldeia e, pre­li­mi­na­res à frente, no dia em que um homem e uma mulher vão casar. A pobreza da aldeia transfigura-se: a boda é a epi­fa­nia gas­tro­nó­mica dos pobres e opri­mi­dos. Há uma fan­ta­sia de car­nes, flo­res­cem bolos, o paraíso de um enso­pado. As pes­soas vestem-se como lírios amar­ro­ta­dos, mas felizes.

Eis que chega o comis­sá­rio sovié­tico que comanda o regi­mento ocu­pante. Esta­line mor­reu e as fes­tas ficam proi­bi­das. Não há boda para nin­guém – e per­gunto, ter-se-á casado alguém quando Sala­zar mor­reu? Um luto calado, sen­tado e virado para a frente deve esma­gar durante sete dias a aldeia, toda a Romé­nia, até Sar­tre em França, como diria Nel­son Rodri­gues se tivesse visto o filme.

O povo cala, sabendo que não vai comer. Mas o romeno é pelo menos tão manhoso como o por­tu­guês e Hora­tiu Mala­ele, o rea­li­za­dor, inventa uma longa cena tão hila­ri­ante como assus­ta­dora. O povo, às escon­di­das, leva as vitu­a­lhas para uma sala subrep­tí­cia. Repa­rem, não falei de clan­des­ti­ni­dade, o que impli­ca­ria acção polí­tica, disse às escon­di­das que é a forma de matar a gula e fazer a festa.

Na sala, à luz de velas, estão agora os con­vi­vas. Nem uma pala­vra, nem uma gar­ga­lhada. Falam por mímica, riem-se mos­trando os den­tes. Copos e gar­ra­fas envol­tos em pano para não tilin­ta­rem. Recolheram-se gar­fos e facas, come-se à mão. A peque­nina filar­mó­nica aba­fou os ins­tru­men­tos e toca sem som, o que, bem sei, faz cho­rar John Cage. Nada se ouve, um pio, um som – ape­nas uns bor­bo­rig­mos e o sub­ver­sivo pei­di­nho que um con­vi­dado segura nos míni­mos deci­béis, prolongando-o o mais sua­ve­mente pos­sí­vel para alí­vio de todos.

O romeno é manhoso, mas Esta­line mor­reu e há mor­tos com ouvi­dos de tísico. Têm mesmo de ver Nunta Mută para sabe­rem como acaba. Mas acaba. E é sem­pre tão mau o que acaba, como bom o que começa.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

2 Comentários para “Casou-se alguém quando Salazar morreu?”

  1. O filme passado pelo Manuel deve ter um final mau ou bom, merece outra crônica. Tenho que ver, mas creio não conseguir ver. Conta mais Manuel.

  2. Um dia ainda conto o final, Miltinho…Quando houver inspiração. Só não sei se contarei o final do filme ou o que eu acho que o filme deveria ter…

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