Foi contra tudo isto que lutámos

zzzzzzcannesPassaram-se tan­tas coi­sas em Can­nes. Houve um tempo em que ia lá todos os anos. Entre o fes­ti­val de cinema, os gran­des mer­ca­dos de tele­vi­são, duas, três vezes ao ano, ali ao lado das encos­tas que Picasso, Cal­der, Fitz­ge­rald esco­lhe­ram para pin­tar e escrever.

Can­nes é a um salto de Saint-Paul de Vence, a um pulo de lobo de Saint-Tropez, uma espa­dei­rada de heli­cóp­tero de Éze. Gosto de Can­nes e dos arre­do­res, dos almo­ços casei­ros no Mère Bes­son, dos jan­ta­res fora no Mou­lin de Mou­gins ou no Colombe d’Or. Das coli­nas, pelas estra­das estrei­tas e sinu­o­sas, escorre ainda um inde­ci­frá­vel boca­di­nho da aris­to­cra­cia russa escor­ra­çada a pon­ta­pés pro­le­tá­rios por Lenine, o sebo petro­lí­fero de alguns mili­o­ná­rios ame­ri­ca­nos que o capi­ta­lismo dos anos 30 ape­ral­tou, para não falar do mais con­tem­po­râ­neo toque semi­nal das vede­tas pop, espar­ti­lha­das pela obri­ga­tó­ria pose de transgressão.

Passaram-se tan­tas coi­sas em Can­nes. Redes­co­bri o mais pri­má­rio e sel­va­gem pra­zer de espec­ta­dor no dia em que lá vi – melhor seria dizer que afi­am­brei com den­tes de Wil­lem Dafoe – o Wild at Heart, de David Lynch. Estive com o mais exal­tado des­ca­ra­mento à espera que hou­vesse molho numa con­fe­rên­cia de imprensa de Godard. Dan­cei até às 4 da manhã na estrei­tís­sima deca­dên­cia do La Chunga com umas ame­ri­ca­nís­si­mas play­ma­tes da Play­boy que eram um poço de saúde e, vá lá, ino­cên­cia. Em cima da mesa. Quero dizer: dan­çá­va­mos em cima das mesas que é como se dança no La Chunga.

Passaram-se tan­tas coi­sas em Can­nes. Um dia, vin­dos desse bun­ker que é o Palá­cio do Fes­ti­val, a brisa medi­ter­râ­nica a ame­ni­zar o calor do Abril, a vaga som­bra das ilhas a desenhar-se con­tra o fim de tarde, três ami­gos meus entra­ram pela clás­sica porta do hotel Carl­ton. Pas­sa­ram a recep­ção e vira­ram em direc­ção à cris­ta­lina ele­gân­cia do bar. Os cor­re­do­res de altís­simo pé-direito, can­de­la­bros a fais­car ouro, as amplas jane­las a dila­tar o assom­broso azul da baía que só as linhas quase sin­ge­las dos iates recor­ta­vam. De den­tro para fora e de fora para den­tro respira-se no Carl­ton um luxo que se sente con­for­tá­vel de e por ser luxo. Em pleno cor­re­dor do mais belo hotel de Can­nes, a um dos meus ami­gos, em passo ainda mili­tante, cai-lhe um pingo de nos­tal­gia no cabelo bem tra­tado. Vira-se para outro dos com­pa­nhei­ros, o mais heróico e de outros tem­pos tão soli­dá­rios, e diz-lhe: “Foi con­tra tudo isto que lutámos!”

O meu segundo amigo ia con­cor­dar, dizer tal­vez que sim, mas hesi­tou, preso entre a sur­presa e o silên­cio que o chão de már­more pedia. “Foi con­tra tudo isto que lutá­mos” e, uns pas­sos atrás, a admi­rá­vel mulher do meu segundo amigo, leve, sem ofensa, res­sen­ti­mento, ou outra coisa que não seja a ben­dita acei­ta­ção do mundo que nos rodeia, res­ponde, gen­til: “Ainda bem que perderam.”

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

2 Comentários para “Foi contra tudo isto que lutámos”

  1. Miltinho, nunca se desmente uma senhora, muito menos a admir´+avel mulher do meu amigo. Um grande abraço, e como vinha escrito nos fins dos filmes do Jonathan Demme: “A luta continua”

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