Uma deliciosa simetria

zzzmarilynTodo o turista é negli­gente. Mesmo visi­tando a mais per­feita cate­dral, o pro­saico turista sai, sem uma genu­fle­xão, ofe­re­cendo ao sacrá­rio o rotundo tra­seiro. Ouvi um crente queixar-se. Dizia que estes visi­tan­tes, insen­sí­veis ao sagrado, expondo a intrans­cen­dên­cia do seu pos­te­rior ao altar, pare­cem oferecer-lhe a única pos­sí­vel imper­fei­ção da Criação.

Con­cordo e dis­cordo. À mai­o­ria dos turis­tas pouco dizem os arrou­bos mís­ti­cos de S. João da Cruz e nenhuma tur­ba­ção lhes advém do escan­da­loso mis­té­rio da tran­subs­tan­ci­a­ção que no Altar se encerra. É ver­dade: há no turista menos espi­ri­tu­a­li­dade do que a dum recon­tro de esta­ção de ser­viço entre os Super Dra­gões e a Juven­tude Leo­nina. Condenem-se os turis­tas, salve-se a Criação.

Aten­te­mos no pos­te­rior humano, pers­cru­tando esse insó­lito pedaço da Cri­a­ção. Num ins­tante per­ce­be­mos que é ina­ta­cá­vel. Na deli­ci­osa sime­tria, na infi­nita soberba das suas linhas cir­cu­la­res, na inson­dá­vel geo­gra­fia, o pos­te­rior humano é uma das mais sump­tuá­rias afir­ma­ções da Cri­a­ção. Para seu Poder e Gló­ria, a Cri­a­ção dis­pen­sava esse ponto de apoio. Esculpindo-o, o grande arqui­tecto mos­trou mar­mó­rea deli­ca­deza e redonda iro­nia. Agradece-lhe a vida e agradece-lhe o cinema.

Até o mamá­rio cinema ame­ri­cano lhe pres­tou vas­sa­la­gem em dez glo­ri­o­sos segun­dos. O filme é Some Like it Hot, de Billy Wil­der. Marilyn cami­nha pela pla­ta­forma da esta­ção de com­boios em direc­ção a Tony Cur­tis e Jack Lem­mon. A visão dela, de frente, abre-lhes os olhos de espanto. Entre­tanto passa e já estão agora a vê-la dou­tra pers­pec­tiva. Quanto mais a câmara fecha no olhar deles, mais aque­les olhos se dila­tam em estar­re­cido assom­bro. Wil­der dá-nos a seguir, em con­tra­campo, o melhor plano ame­ri­cano, se assim lhe posso cha­mar, que já se viu, enqua­drando da cin­tura para baixo a mulher que cami­nha. Vai den­tro de um ves­tido preto que ondula como nunca ondu­lou ves­tido algum. Há uma esplên­dida massa cor­po­ral que balança, oscila e, ó lábil curva, redon­da­mente se salienta.

Per­ce­bendo que a pla­teia já tem a cal­deira a fer­ver, o pró­prio com­boio saúda a graça que passa, sol­tando dois asso­bi­a­dos sopros de vapor que envol­vem, não digo Marilyn, mas uma boa parte de Marilyn, na humi­dade de pouco diá­fana nuvem.

Vi esta cena uma boa cen­tena de vezes. As per­nas de Marilyn, con­tei, dão 12 pas­sos cur­tos, há um pen­du­lar movi­mento de subida e des­cida do corpo, das ancas, uma osci­la­ção este-oeste dos simé­tri­cos “ron­deurs” que rija e ame­a­ça­do­ra­mente esti­cam o ves­tido. O nosso atro­pe­lado olhar chora e ri, agra­de­cendo à Cri­a­ção o gosto lúdico a que se entre­gou quando, che­gada ao fim das cos­tas huma­nas, diva­gou filo­so­fi­ca­mente, sope­sando cada metade da solu­ção nos pra­tos da sua justa balança. Ou não fosse a sime­tria a divina regra de toda a beleza.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

Some Like it Hot, é claro, no Brasil se chama Quanto Mais Quente Melhor.

7 Comentários para “Uma deliciosa simetria”

  1. Cá está o Miltinho em acção!
    Não podia faltar, um texto novo e pimba!

  2. Aqui no Brasil, não desprezamos a questão mamária, mas o que valorizamos mesmo são os rotundos posteriores.

  3. Aqui no Brasil, não desprezamos a questão mamária, mas o que valorizamos mesmo são os rotundos posteriores.

  4. Miltinho, tem toda a razão, não se pode pender mais para a direita do que para a esquerda e vice-versa.
    Luis Carlos, é universalmente famosa a devoção brasileira…

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