Kamala estragou alguns canteiros. meu pai nunca se impacientou.
os grandes fazem o mesmo. irracionais são o que são. vamos ensinando, talvez eu cerque este trecho do jardim pra você.
o menino ganhou uma sombra nova. aonde ia ele, lá estava a criaturinha. os dogues começavam a se irritar com aquela déspota tão miúda e tão exigente. todavia, ela tremia por um nada.
estávamos no quinto dia após sua chegada. parou um carro à entrada e se chegaram um homem e um rapazinho.
é o seu ex-aluno, vovô.
eu abro o portão.
rabos que se balançam, cumprimentos, apresentações. depois de descerem os dois com o menino, para conhecer a cascata, entramos todos. o visitante foi ao assunto.
a associação de pais e mestres também tem um jornalzinho bimestral. como todos gostaram da sua entrevista sobre a arte moderna…
gostaram da maneira como falei, provavelmente, não do que falei…
bem, pediram-me pra perguntar a você se poderia assinar um novo artigo. é que eu falei de suas aulas e de como você metia o pau na ditadura.
ora, pois. vocês tão riquinhos e alienados e eu falando mal da ditadura. e, no entanto, houve muito sofrimento. imaginem, você em casa e chega uma amiga, grávida, apavorada porque prenderam seu marido, também amigo, trabalhador e estudante! e nessa noite nasce a criança! e nessa manhã, você dá uma aula. e o pai, estudante e trabalhador, só vem a conhecer o filho cinco dias depois, mas sabem como? esvaziam uma ala da maternidade e fardas e armas isolam um quarto e um deles entra e fala pra mãe, qualquer palavra que possa parecer informação codificada e prendemos todo mundo porque a criança já nasceu. nesse clima, e diante de um vigilante armado, o estudante-trabalhador vem a conhecer seu primeiro filho. e você quer visitar a amiga mas alguém diz não vá porque seu cabelo está muito comprido, é perigoso. e você vai pra escola e dá uma aula sobre a quinta sinfonia de Beethoven. e desabafa!
e as torturas? e as mortes? não vão querer que eu fale disto!, não?
não. queriam fazer um número sobre capitalismo e socialismo.
uau! vovô não vai poder falar em bunda! né?, vovô!
poderia falar nos caras-de-bunda, nos bundões e nos bundas-moles. rindo. mas presumo que a coisa seja mais séria. . .
séria, sim. mas gostaram da sua espontaneidade.
espontaneidade. isto me lembra um ótimo período da minha vida, há anos que são mais plenos do que outros. mas vamos ao assunto. posso escrever do jeito que quiser? quantas linhas? quando você vem pegar?
você escolhe. escolhe tudo!
venha amanhã.
amanhã? amanhã!?
ora, rapaz, na minha idade, ou você já concluiu alguma coisa sobre esse asunto ou nunca mais vai chegar a entender.
e eis que assim foi o diálogo. fiz um café e depois conversamos todos, sobre o gramado, do lado de trás da casa. os cães deitados ao redor, Kamala no colo de meu filho. logo, logo, eles se foram.
após o banho e nossa costumeira sopa, falei ao menino.
ponha Kamala na caixinha. vamos passear até a igrejinha. vamos?
vamos.
meu pai me sorriu com os olhos. ele sabia que eu sabia que queria ficar só, para escrever seu artigo, seu texto, sua coisa.
de mãos dadas, eu e o menino principiamos a subir a rua já escura. sentia um tremor emocionado em seus dedinhos. fiquei pensando no que poderia estar a preocupá-lo.
você está tranqüilo?
estou muito contente.
contente? com quê?
com tudo, pai.
silêncio.
alguns cães ladravam enquanto passávamos. vimos cavalos e ovelhas, quase que apenas suas sombras imóveis no meio das grandes sombras das grandes árvores. dentro das poucas casas, algumas fracas luzes. alguma vez um vulto passava pela janela.
nesta casa moram os dois irmãos que vão sempre na cascata comigo, pai.
já foi na casa deles?
a mãe deles falou que você é estranho mas é um bom vizinho.
riso.
continuamos caminhando. chegamos à pequena capelinha à beira da estrada.
pai, por que fizeram isto aqui?
pela data, é muito velha, né?
o vô disse que deve ter morrido alguém aqui.
por causa desta cruz?
é!
você tem medo?
eu, não! mas eu acho muito feio.
risos.
a mão não mais tremia.
aqui está mais escuro ainda, pai.
dá pra ver bem as estrelas. venha no meu colo. nossa! está ficando muito pesado. qualquer dia não te aguento mais.
você conhece alguma estrela?
não! nunca consegui saber qual é qual. a única coisa que sei é que, se o brilho tremer, é estrela, se o brilho for fixo, é planeta.
então vamos procurar um planeta. como o céu é grande! né?, pai. é por isso que as pessoas falam tanto de Deus?
quem sabe? mas se você pensar em você por dentro, com todos os seus pensamentos, vai achar também que tudo é muito grande.
eu acho que a gente é confuso. a gente pensa mas não sabe por que pensa e também não pode parar de pensar. por causa disto as pessoas também falam de Deus?
acho que sim.
ele deitou a cabeça no meu ombro.
está com sono?
não. mas você disse que estou ficando pesado. quero aproveitar.
sorriso.
e continuamos a caminhar em direção à igreja mais além. dali principiamos a volta. nada mais falamos. ao chegar na entrada da chácara, não entramos mas continuamos descendo a estrada. seguimos até a ponte. já o menino descera do meu colo. fomos até o campo de futebol. quero-queros cantavam e voavam baixo; eles sempre reclamam quando alguém se aproxima muito.
durante um tempo olhamos a roda dágua. pena que não funciona mais…
meu pai nos esperava com chá.
ah, ela está dormindo com a Luluva, pai. escreveu tudo?, vovô.
escrevi. vamos tomar um chazinho. este mais frio é pra você.
depois, subimos. antes de apagar o lampião, falou meu pai.
como você está de leitura?, rapaz.
eu ainda gaguejo em palavras difíceis, vô.
nada disto, pai, ele já lê praticamente tudo.
então leia o que escrevi.
o seu negócio pro jornalzinho?
por que não?
gostei da idéia; eu falei. eu até podia colocar uma música.
mas o quê que é isto? quanto teatro! que tipo de música seria adequada a algumas bobagens sobre capitalismo e socialismo?
hm. não é fácil. penso num clima de delicadeza, pai.
delicadeza, que horror é este?
eu te conheço, pai. vou colocar a Berceuse, de Chopin.
meu pai ficou sério e me olhou com os olhos muito brilhantes. seu rosto mostrou uma felicidade que beirava à comoção absoluta.
você sabe o que faz. coisa séria é coisa séria.
depois que o piano começou, meu filho principiou sua leitura, ainda infantil, compassada, lenta, escandida, as palavras todas com seu sentido apenas absoluto, desligadas umas das outras e de seu contexto geral.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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