Thelma

A internet, para quem sabe procurar, reserva surpresas, achados e lembranças. Mas é preciso ter muita ciência, para não cair nessa tsunami de informações excessivas, muitas vezes inúteis e mentirosas. Como todo os instrumentos que o homem cria, temos que ter o máximo de cuidado para usá-la e não sermos usados por ela. Existem outras formas de pesquisar, que vão saindo de moda, mas são muito confiáveis embora muito demoradas para o gosto dos internautas: os dicionários, as enciclopédias e os livros.

Outro arquivo maravilhoso que possuo é minha coleção de discos de vinil. Fica em uma estante especial, de madeira trabalhada com esmero, e os exemplares adquiridos ao longo de décadas, estão em ordem numérica e alfabética. Às vezes vou lá procurar o que tenho mas me esqueci. Foi o caso dessa manhã pós carnaval.

À noite, vendo um especial sobre Nelson Cavaquinho, lembrei-me de uma cantora que conheci há muitos anos, no Rio de Janeiro, que gravara um LP só com canções do genial sambista carioca. Com arranjos de Radamés Gnatalli, essa lenda da música brasileira, Thelma canta Nelson Cavaquinho, gravado em 1966, é uma das preciosidades que guardo entre meus pertences. Esse é um ter que não me incomoda, pois não sou daqueles que vivem em busca de riqueza e mais riqueza. Folga mesmo, eu imagino, só conquistarei ( e distribuirei) se algum dia improvável a mega-sena bater em minha porta.

Antes de colocar o disco para tocar, verifico algumas curiosidades sobre ele. A primeira é a constatação de que o belíssimo samba “ A Flor e o Espinho” tem um terceiro parceiro, além de Nelson e Guilherme de Brito. É Alcides Caminha, funcionário público e, quem diria?, compositor, criador, sob o pseudônimo de Carlos Zéfiro, de uma coleção de histórias em quadrinhos eróticos, que ele chamava de “catecismo”, que impulsionou a libido de gerações de rapazes adolescentes brasileiros. Vivendo e aprendendo.

O texto da contracapa do disco é de Sérgio Porto, o inesquecível e insubstituível Stanislaw Ponte Preta: “ a idéia de juntar Thelma a Nelson Cavaquinho aparentemente é minha, mas, na verdade, nasceu da necessidade de dar à cantora um repertório de sambas dignos de seus excelentes dotes de sambista e, também, da necessidade fazer justiça ao veterano compositor – um dos mais importantes de toda a História do Samba – e até aqui sem ter um único disco seu”.

Depois de Nara Leão, em 1964, com “ A Luz Negra”, viriam Clara Nunes e outros a cantar a música de Nelson. E a grande amiga Beth Carvalho, que ensinou Nelson Cavaquinho para o Brasil. Não sei por onde anda a baiana morena Thelma, que um dia conheci na casa de Milton Nascimento. Mas o LP, que agora porei para tocar, tem tudo para me emocionar.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em março de 2011.

Um pequeno adendo:

O disco sobre o qual fala Fernando Brant teve um relançamento em 1979, pelo selo Epic, da CBS, hoje Sony Music. Vinha com uma capa diferente e com o título alterado para Thelma Soares interpreta Nelson Cavaquinho. Um encarte reproduzia o texto original de Sérgio Porto/Stanislau Ponte Preta. Tenho o LP. Minha coleção seguramente não é tão rica quanto a de Fernando, mas não chega a ser desprezível. (Sérgio Vaz)

5 Comentários para “Thelma”

  1. Telma, que na verdade se chama Cordélia Leão, retornou para sua cidade natal, Maceió(sim, Telma é alagoana e não baiana como muitos pensam…), vive reclusa em seu AP num conjunto habitacional popular e se tornou budista. Gravou um cd independente em 97/98 (Telma Soares Canta Marcondes Costa)e faz esporádicos shows por lá.Uma pena!

  2. Thelma Soares gravou com muito balanço, em 1963/64, a faixa Maria Moita, no disco Pobre Menina Rica, de canções de autoria de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, também com arranjos de Radamés. Talvez tenha sido levada pela mão de outro alagoano, Moacir Santos, que canta no mesmo disco e com sotaque nordestino o Samba do Carioca.
    Thelma morou na Itália, não?

  3. Thelma Soares(Cordélia Leão), grande cantora de grandes compositores, faleceu non dia 06/09/2018, em casa, desconhecida do grande público e dos membros da MPB. Foi assistida por seus irmãos (Leão, Ana e Everaldo, e as cunhadas Gilda e Ilza). Não fosse isto estaria abandonada à própria sorte. Pobre Thelma Soares, que Deus a tenha.

  4. Caro Edvaldo, acabo de ler seu comunicado, sobre o falecimento de Thelma . Conheci ( bem! ) a grande pessoa e cantora, em Sampa nos anos 1966/67 . Formávamos um grupo de amigos q incluia um desconhecido Milton Nascimento . Fizemos “shows” improvisados, semi-amadores juntos ( os três ) e Thelma amava minhas composições . Depois a vida nos separou: eu saí do País e vivi 36 longos anos no Exterior . Que a saudosa Thelma,agora, descanse em Paz !

  5. Thelma fue – en mi opinión – una de las mejores cantantes de la mpb de los años 60. No en vano actuó junto a Baden y a Vinicius, y éste último la elogió numerosas veces. Tengo los tres discos grabados por ella en esa década. Comparto con Uds. un texto que encontré en internet, contando avatares de su vida:
    “No desbunde de 1972, Telma Soares en passant por Paris dividiu uma garçonnière minúscula com Antônio Bivar, como ele narrou:
    “A essa altura chegou da Itália, onde passara dois anos na cadeia, a cantora brasileira (maranhense) Telma Soares, que, nos anos 60, na continuação do surto da Bossa Nova, fora descoberta pelo violonista Baden Powell e pelo poeta Vinícius de Moraes. Durante algum tempo apresentou-se com os dois – formando o trio Baden, Vinícius e Telma – no Au Bon Gourmet, em Copacabana, no Juão Sebastião Bar, em São Paulo, e no circuito universitário. Telma chegara a ser cultuada por sua voz morna e mole e pelo balanço atrasado, sua marca registrada. Depois que a Bossa Nova saiu de moda, Telma, que por natureza era sem expediente, caiu numa espécie de ostracismo. Pouco ambiciosa, nasceu para amar. Para ter um marido, um lar, cozinhar, ser esposa. Casou-se em São Paulo com um italiano, fotógrafo cinematográfico, que passava pelo Brasil fotografando um documentário sobre MPB para a tevê italiana. Casada, Telma foi morar com o marido na Itália. Lá, por falta de sorte e convivendo com artistas, estava na casa de não-sei-quem em Roma na exata noite em que a polícia deu uma blitz, levando, por conta de drogas, entre outros o jeune premier do cinema, Pierre Clémenti, que, sendo um astro internacional (um dos atores favoritos de Buñuel), ganhou manchete nos jornais de todo o mundo. E a pobre da Telma, que estava na tal casa só de passagem e tinha horror a qualquer tipo de droga, nem mesmo suportando a natural maconha, não sabendo se articular, foi também encanada. E agora, em 1972, depois de dois anos atrás das grades, estava novamente livre, ainda que muito perplexa e totalmente sem entender o que se passava no mundo. Fora da penitenciária, Telma trocou Roma por Paris, pensando que na capital francesa talvez pudesse retomar a carreira de cantora, já que o casamento terminara naquela noite fatídica. Um casal de martiniquenhos, que Telma conhecera em Roma e que agora morava em Paris, emprestou-lhe uma garçonnière até que ela arranjasse outro lugar para ficar. E uma noite, em visita aostudio de Norma (Bengell) e Gilda (Grillo), e a conversa girando em torno de eu estar sem lugar, Telma me convidou para ficar com ela. Pior que esse lugar acho que nunca morei em outro. Era um único cômodo, minúsculo, no andar térreo. Sem luz diurna, lúgubre, num treme-treme em plena zona do basfond. Uma única pia e um fogãozinho de duas bocas. Nem chuveiro tinha. Só a privada e um bidê. De modo que logo entendi que teria de me contentar com apenas banhos de assento. E o inverno já começara a marcar presença. Era o fim.
    Todos estavam entusiasmados. E quando eu estava entre eles até esquecia as agruras de minha outra vida, a falta total de dinheiro, o vestuário capenga e o colchão no chão do quartinho descolado por Telma, em Pigalle.
    Telma estava tentando se achar. Não estava sendo fácil. O timing devagar dela não ajudava. A competição na saison que começava era ferrenha e na base do jogo rápido, coisas que Telma, se antes já não alcançava, agora então, depois de dois anos encarcerada, desacostumada, ficava difícil. Ela se juntou a uma miniescola de samba e, de crooner, cantava em boates, cantava na rua, participava de shows na província. Telma era boníssima e tinha um coração de ouro. Um dia, enfraquecida por se alimentar mal e pouco, caiu de cama gripada. Cuidei dela. Depois peguei a gripe – aliás estava rolando um surto de gripe violenta à qual os franceses deram o nome de “gripe inglesa”, posto que vinda da outra margem do Canal – e Telma me curou com um cozido de mariscos, apimentadíssimo.
    Às vezes emprestávamos moedas um ao outro. Estávamos ambos na pior. Eu ainda tinha esperança de que a sorte se voltasse a meu favor, com Zé Quouine em andamento. Mas Telma estava fora de lugar. Foi procurar uma antiga amiga, a modelo Luana, baiana, e que depois de fazer sucesso nas passarelas brasileiras estourara nas parisienses e estava para casar com o conde de Noailles, de uma das cinco mais importantes e mais antigas casas da França. Talvez por estar dando duro nessa missão, Luana não recebeu Telma, que voltou ali para nossa quitinete miserável em Pigalle decepcionada com a ex-amiga. Ainda assim, Telma ia seguindo sua própria trajetória. Não estava com a turma certa – a rapaziada folgazã da miniescola de samba estava mais a fim de se divertir, comer francesas, de preferência ricas, e descolar uma grana. O bloco, formado por mulatos, negrões e dois gaúchos, queria que Telma entrasse no jogo e se fizesse “salerosa” jogando as madeixas aos franceses – de preferência coroas e de posses. Mas Telma, seriíssima e decepcionada, e só nós dois na nossa menos-que-quitinete, desabafou:
    – Eu não sou puta. Nunca fui puta!
    E era pura verdade. E Pigalle sentiu que o balanço de Telma Soares era outro.
    Entre o Natal e o Ano-Novo outra mudança radical aconteceu. Certa manhã estávamos, Telma e eu, conversando sobre nossas misérias quando sons agressivos de insistentes batidas na porta nos pegaram de susto. Fomos abrir e era um policial mal-humorado e agressivo. Ordem de despejo. Tínhamos de deixar a menos-que-quitinete naquela hora. Que remédio. Telma juntou suas coisas na morosidade que lhe era peculiar, sob a crescente irritação do policial que nos apressava, enquanto juntava eu as minhas. E mais uma vez fui para o studio de Norma & Gilda.”
    (Longe Daqui Aqui Mesmo, confissões, aventura e romance, de Antônio Bivar, 1995.)
    Thelma Soares voltou para as ALAGOAS. Li que agora vive em Maceió e é budista, vivendo em contemplação. De todo modo gravou um album TELMA, (sem o h) canta Marcondes Costa. Participa de shows e apresentações em Maceió, onde sempre é apresentada através do sucesso que fez no passado, cultuada por Vinícius e Baden. É a vida…

    Desde Rosario, Argentina. Marcelo, un admirador de Thelma, que se acaba de enterar que falleció.

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