Não vamos desistir

Este 2 de outubro fez com que três canções ficassem passando pela minha cabeça. Sou assim, não tem jeito: tudo que acontece me faz lembrar de alguma canção. Hoje foram três.

Havia a expectativa de derrotar Jair Bolsonaro já no primeiro turno. Sem dúvida que havia. Os institutos de pesquisa não garantiam isso, mas mostravam que uma derrota dele já no primeiro turno era algo bem próximo. E então é claro, é lógico, é óbvio que o resultado das urnas deixe um gosto amargo na boca.

***

Mas isso não é o pior.

O pior é ver a vitória de tanta gente absolutamente desqualificada, abjeta, lixo, escória, esse nojo que o Capetão da Morte trouxe à superfície quando abriu as comportas do esgoto, em 2018. O general tido como gênio da logística que não sabia onde ficavam capitais estaduais, e participou do assassinato de doentes por falta de oxigênio em Manaus. O ministro do Ambiente que ajudou a passar a boiada para destruir imensas porções da Amazônia. A ministra que viu Jesus na goiabeira.

Meu, os gaúchos elegeram o general Mourão para o Senado. Os paranaenses jogaram fora Álvaro Dias para eleger Sérgio Moro! O povo do Estado do Rio reelegeu Romário para o Senado e o governador Claudio Castro, o sujeito do escândalo da Fundação Ceperj, o cara de três das quatro chacinas mais letais da História do Estado.

Os paulistas desprezaram Edson Aparecido, que foi secretário municipal da Saúde de São Paulo na época pior da pandemia e transformou a cidade na “capital mundial da vacina”, ignoraram o ex-prefeito de São Vicente, ex-governador Márcio França, para eleger o “astronauta”, o cara que vive no mundo da Lua!

Deixaram de fora do Congresso Nacional José Serra, um dos homens públicos mais competentes, brilhantes, que o país já teve, para botar lá Rosângela Moro e um monte de “capitães” e “delegados”!

E ainda por cima deram o primeiro lugar, na disputa para o governo do Estado, a Tarcísio de Freitas, o cara que não sabe neca de pitibiribas sobre São Paulo, que ofendeu todos os paulistas ao dizer que era preciso vir alguém de fora para resolver os problemas do maior Estado da Federação!

A lista não teria fim nunca – deixando claro que uma parte imensa dos brasileiros quer mesmo é essa corja.

Mais de 51 milhões de brasileiros foram capazes de votar no pior presidente que este país já teve!

***

Diante de uma tragédia imensa como essa, uma hecatombe tão grande quanto ver a Itália eleger um governo de extrema direita, dá vontade de desistir.

Sair do país.

(Bobagem, porque como é que a gente vai sair do país e ficar longe da filha e da neta?)

Ah, então esquecer esse troço de política. Deixar pra lá. Quando os jornais chegarem, jogar fora os primeiros cadernos, de preferência sem sequer olhar, e concentrar toda a atenção no segundo caderno. Ler só sobre os filmes, os livros. Sobre música, uai! Dicas sobre vinhos, sobre receitas especiais.

Juro que pensei nisso, ali pelas 15 para as 8 da noite, quando mais da metade das urnas já haviam sido apuradas e Lula tinha 44,86% dos votos válidos contra 46,31% do Capetão da Morte.

Dava para ver, com toda clareza, que a tendência era de inverter, que Lula ultrapassaria Bolsonaro – mas também dava para ver que o sonho de derrotar o monstro no primeiro turno havia sido apenas isso, um sonho. E que no final a vantagem de Lula sobre ele seria bem menor do que a folgada margem de 10 ou 12 pontos apontadas pelos institutos.

E foi aí que pensei nas duas canções. “Sweet Survivor”, que o trio Peter, Paul and Mary gravou no disco que marcou sua reunião, após alguns anos em que cada um tocou carreira solo, diz a coisa expressamente: “Carry on my sweet survivor, carry on my lonely friend / Don’t give up on the dream, and don’t you let it end”. Vá em frente, meu doce sobrevivente, não desista do seu sonho, não deixe que ele acabe.

A outra canção é ainda mais escancarada, a partir do título, “Don’t give up”. Uma beleza de música, uma beleza de letra de Peter Gabriel, que gravou em um dueto emocionante com Kate Bush e depois apresentou em vários lugares do mundo com Sinnead O’Connor. Don’t give up, don’t give up, don’t give up. Eles repetem diversas vezes a coisa: não desista.

(O vídeo que abre esse texto é de uma apresentação da turnê em apoio à Anistia Internacional, no Chile.)

São duas maravilhosas músicas políticas – obviamente políticas.

A terceira canção que ficou passando pela minha cabeça neste 2 de outubro aziago veio depois que Mary botou uma mensagem dura no grupo de zap da família, que choramingava por causa dos resultados ruins. A mensagem era tipo assim: epa, moçadinha boa! O Lula não perdeu para o Bozo. Muito ao contrário: ele ganhou!

Aí me veio à cabeça a canção, que não tem absolutamente nada de política: é uma country music, e trata do tema básico não só da country music mas também dos mais variados gêneros do mundo, desde o sertanejo mais babaca até o mais refinado standard da Grande Música Americana: a dor do amor.

Chama-se “Two Sides to Every Story”, e foi cantada pelo sempre veterano Willie Nelson e a bela Dyan Cannon em um filme que pouca gente por aqui deve ter visto, Honeysuckle Rose (1980), que eu vi, meio bêbado, em um fim de noite, no quarto de hotel na única vez em que estive em Nova York. A canção fala de amores sofridos, traições, tentativas de volta, lembrando sempre o que diz o título, essa verdade absoluta – sempre existem dois lados da mesma história.

Pois é.

Um monte de lixo humano, paladinos do bolsonarismo, como diz a Mary, foi eleito. Este é um lado da história. O outro lado é que Bolsonaro perdeu.

Não perdeu pelos 10, 12 pontos que as pesquisas mostravam, mas perdeu.

Fez de tudo para ganhar. Fez mais do que o diabo faria. Foi contra as leis, a decência, a moralidade, a responsabilidade fiscal, a Constituição para ganhar votos… e perdeu.

Portanto, meu… Nada de desistir. Don’t give up!

Agora é cada um de nós arregaçar as mangas e ver se consegue alguns votos dos amigos que não foram para Lula no primeiro turno, para que a derrota do monstro no segundo turno seja mais robusta.

Faltam 4 semanas apenas!

2 e 3/10/2022      

Um P.S.: Ah, sim… Ao longo da apuração, fui fazendo uma tabela com os números. A rigor, não serve para nada, a não ser para mostrar que havia sempre uma tendência – Lula ia subindo pouco a pouco, Bolsonaro ia caindo pouco a pouco, até que houve a reviravolta. Bem, já que fiz, publico:

Hora Apuradas (%) Lula (%) Bolsonaro (%)
17h33 0,62 41,24 47,79
17h40 0,98 40,96 48,47
17h57 1,89 41,58 48,66
18h19 4,9 42,10 48,84
18h35 9,06 42,74 48,44
18h48 16,6 43,24 48,02
18h58 20,28 43,34 47,91
19h11 28,19 43,49 47,74
19h20 35,51 43,55 47,67
19h30 41,2 44,16 47,01
19h34 46,46 44,47 46,69
19h44 54,59 44,86 46,31
19h53 60,33 44,87 46,01
19h58 63,5 45,2 46,01
20h02 66,66 45,55 45,69
20h09 70,0 45,74 45,51
20h12 73,31 45,99 45,29
20h16 76,28 46,15 45,14
20h41 91,61 47,12 44,32
21h04 95,04 47,63 43,88
21h27 96,74 47,83 43,72
22h12 98,86 48,16 43,43

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