Ao longo de todas as semanas que antecederam este 30 de outubro, na campanha presidencial mais polarizada desde a redemocratização, mais suja, mais baixa, mais guiada pelas mentiras e pela rejeição aos candidatos do que por propostas para o país, sempre houve, me parece, neste mundo e neste Brasil de tantas dúvidas, duas certezas. A de que não era uma disputa entre esquerda e direita, e sim entre democracia e ditadura, entre civilidade e barbárie. E a de que, encerrada a eleição, seria preciso tentar pacificar o país.
Bem, o lado da democracia, da civilidade venceu. Ainda bem. Felizmente. Graças a Deus, a todos os deuses, todos os santos de todas as religiões, todos os orixás.
Mas é uma dureza, é uma tristeza infinita vermos que mais de 58 milhões e 200 mil brasileiros votaram em um sujeito que se orgulha por representar a ditadura, a incivilidade, a barbárie, a grossura, a falta de educação. Que começou a vida pública com planos terroristas contra instalações do próprio Exército, e, passado para a reserva num acordo para fugir de punição mais rigorosa, virou político sempre medíocre. Que só aparecia por brindar os grupamentos mais radicais da extrema direita com discursos tipo a ditadura tinha que ter matado muito mais gente, Fernando Henrique Cardoso deveria ser fuzilado, você não merece ser estuprada, etc, etc, etc, etc.
Mais de 58 milhões e 200 mil brasileiros votaram agora no pior presidente que o Brasil já teve, Floriano Peixoto, Garrastazu Médici e Fernando Collor de Mello incluídos! O sujeito que fez o que ele fez durante a pior pandemia que atingiu o país nos últimos cem anos! O cara que fez piada com os doentes de Covid que não conseguiam respirar!
Como é possível querer agora reunificar o país, pacificar as famílias, fazer com que convivam harmoniosamente as pessoas que votaram nesse monstro e os outros mais de 60 milhões e 344 mil, que têm profundo ódio de tudo, absolutamente tudo o que ele representa?
Como querer agora uma convivência pacífica entre os admiradores de Roberto Granada Jefferson, Carla Pistola Zambelli, Damares a Tarada da Goiabeira, de um lado, e os brasileiros de bem do outro?
Como eu vou conseguir conversar na boa agora com a minha amiga curitibana bolsonarista raiz, minha prima belo-horizontina bolsonarista, minha amiga e ex-namorada de família de intelectuais judeus que virou fã do fascista – e como elas vão conseguir conviver comigo, se percebemos agora que somos opostos em absolutamente tudo?
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Tem parecido uma verdade inconteste que a polarização está aumentando em todo o mundo. Que nunca as sociedades foram tão divididas quanto agora.
As indicações são de fato essas – até mesmo os parágrafos logo acima, em que eu, uma pessoa que sempre defendeu a convivência dos díspares, dos antagônicos, deixei extravasar minha indignação com quem defende o que o bolsonarismo significa.
Mas será mesmo verdade? Nunca antes neste mundo de Deus e o diabo as sociedades foram tão divididas?
Vejamos os exemplos dos Estados Unidos, o país mais rico que já houve no planeta. Sim, são um país dividido radicalmente ao meio hoje – são os Estados Desunidos da América. Perto da metade é apaixonadamente pró-direito ao aborto, perto da outra metade é apaixonadamente contra. O mesmo quanto à pena de morte. O mesmo quanto ao caráter do ensino – religioso ou laico, pró-Evangelho ou pró-Ciência, a Bíblia ou Darwin.
Temos aí Donald Trump, que ajudou a radicalizar cada vez mais a desunião dos Disunited States of America, é bem verdade. Mas essas divisões são quase tão antigas quanto a preferência da maior parte dos animais em andar para a frente – essa coisa contra a qual Bolsonaro e os bolsonaristas se insurgem violentamente, favoráveis que são a que a sociedade retorne ao tempo do faroeste e em seguida às cavernas.
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A tarefa de pacificar o país não será nada fácil. Eu diria que ela é mais difícil ainda do que encontrar um mínimo múltiplo comum entre os economistas reunidos pela frente ampla que apoiou a candidatura Lula para elaborar um plano de governo que consiga enfrentar a dívida pública incomensurável deixada pelo bolsonarismo e a necessidade de combater a miséria de imensa parte da população.
Há tarefas para o novo governo que não são tão espinhosas assim. Trabalhar pró meio ambiente, isso é quase baba. É só refazer o esquema que já existia e que foi destruído pelo desgoverno Bolsonaro: joga fora tudo o que foi (des)feito nos últimos quatro anos, reinstaura o que havia antes, melhora uma coisa aqui, outra ali, e pronto.
A presença do Brasil no mundo, isso vai por si só. O mundo está eufórico com a volta do Brasil ao concerto das nações.
O maior problema é pacificar o país.
Devo dizer – eu que nunca fui petista nem lulista, muitíssimo antes ao contrário; que só havia votado uma única vez no PT, quando, no segundo turno de 1989, a opção era entre Collor e Lula – que, se o presidente eleito governar com talentos tão bons quanto o do redator do primeiro discurso pós-vitória… Meu… Teremos quatro anos maravilhosos pela frente.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 31/10/2022.
Os números
Exatamente como no primeiro turno, fui anotando os números ao longo da apuração. Exatamente como no primeiro turno, Bolsonaro saiu à frente, porque os votos do Sul e do Sudeste – onde sua votação é muito alta – costumam ser totalizados antes daqueles do Nordeste e do Norte.
O Globo publicou na primeira página desta segunda-feira, 31/10, um gráfico que mostra esse momento a momento da apuração:
Como eu fiz mesmo a tabela, publico aqui, como fiz no primeiro turno. Acho que é um registro interessante.
Hora | Apuradas (%) | Lula (%) | Bolsonaro (%) |
17h07 | 0,15 | 53,9 | 46,1 |
17h24 | 3,96 | 45,96 | 54,94 |
17h34 | 8,71 | 47,79 | 52,22 |
17h39 | 12,02 | 48,14 | 51,82 |
17h44 | 15,34 | 48,31 | 51,69 |
17h49 | 19,23 | 48,43 | 51,57 |
17h58 | 25,27 | 48,77 | 51,23 |
18h04 | 30,10 | 48,94 | 51,06 |
18h07 | 31,67 | 49,09 | 50,91 |
18h13 | 37,13 | 49,25 | 50,75 |
18h17 | 40,78 | 49,36 | 50,64 |
18h21 | 43,54 | 49,46 | 50,54 |
18h25 | 46,28 | 49,57 | 50,43 |
18h29 | 50,92 | 49,70 | 50,30 |
18h36 | 56,57 | 49,82 | 50,18 |
18h38 | 61,06 | 49,90 | 50,10 |
18h44 | 66,87 | 49,99 | 50,01 |
18h48 | 69,86 | 50,07 | 49,93 |
18h55 | 77,50 | 50,23 | 49,77 |
19h07 | 87,55 | 50,48 | 49,52 |
19h09 | 89,11 | 50,51 | 49,49 |
19h11 | 90,67 | 50,54 | 49,46 |
19h18 | 93,46 | 50,62 | 49,38 |
19h27 | 95,96 | 50,68 | 49,32 |
19h32 | 97,03 | 50,72 | 49,28 |
19h50 | 98,45 | 50,80 | 49,20 |
21h40 | 99,98 | 50,90 | 49,10 |
Final | 100,00 | 50,90 | 49,10 |
Número de votos válidos | 124.252.796 | 60.345.999 | 58.206.354 |
30 e 31/10/2022
Espero bem que os governantes tenham a lucidez necessária para resolver os graves problemas que o Brasil enfrenta.
Só uma correção. Não é Fernando Peixoto. É Floriano.
Excelente texto, como sempre
Opa! Claro que é Floriano Peixoto! Muito obrigado pela correção, André!
Grande abraço.
Sérgio