80 anos!
Diacho: é ano que não acaba mais. E, no entanto, até que não: parece que não foi há muito tempo que, há exatos 40 anos, o Jornal da Tarde publicou uma matéria de duas páginas no Caderno de Sábado sobre os 40 anos de Bob Dylan.
“Time passes slowly when you’re lost in a dream”, ele escreveu. Verdade, o tempo passa devagar – mas ele também escreveu que “time is a jet plane, it moves too fast”. O tempo passa depressa demais.
No discurso que fez numa das muitas homenagens de entrega de prêmio a Dylan – um prêmio especial pelo conjunto da obra na 33ª cerimônia do Grammy, em Nova York, em 1991 -, Jack Nicholson disse que, enquanto se preparava para a cerimônia, tinha ficado pensando na palavra paradoxo. Dylan, disse ele, é um paradoxo:
“No caminho entre Los Angeles e aqui, enquanto cruzava o país, suas montanhas, seus rios, seus crimes, seus amantes, que ele tocou tão profundamente com seus dons, vim pensando sobre o que dizer nesta oportunidade para homenagear o Tio Bobby. Então comecei a folhear o dicionário. Todas as palavras pareciam se aplicar a ele. Na letra P, duas palavras abaixo de paradigma, que significa modelo, estava a palavra paradoxo, a palavra mais justa para ele, eu acho. Significa uma afirmação parecendo contraditória, mas, na realidade, possivelmente expressando uma verdade. Ele tem sido chamado de tudo, da voz de sua geração à consciência do mundo. Rejeita ambos os títulos, e todos os outros que tentaram usar para categorizá-lo ou analisá-lo.”
Categorizar, analisar: em “All I really Wanna Do”, do quarto álbum, de 1964, ele havia escrito: “I ain’t lookin’ to block you up / Dock or rock or lock you up / Analyze you, categorize you / Finalize or advertise you / All I really want to do, yeah / Is, baby, be friends with you”.
Um tanto paradoxalmente, abri aquele meu texto de duas páginas no Jornal da Tarde não com uma frase minha, mas como uma citação. Sei lá: talvez eu tenha achado que abrir com uma frase de um livro desse maior importância ao homenageado do que alguma coisa saída da cabeça de um jornalista obscuro, deconhecido.
“Bob Dylan reescreveu a gramática do rock assim como James Joyce reescreveu as regras do romance. Ele é o único autor de rock a quem o termo poeta pode ser rigorosamente aplicado. É o maior e mais invulgar talento da música rock. O que os Beatles fizeram, em conjunto, pelo rock, ele fez sozinho.”
O autor da frase se chama Jeremy Pascall, e ela está no seu livro The Illustrated History of Rock Music, publicado em Londres, em 1977. Ainda no começo do meu texto eu dizia que já havia, então, naquela ocasião, 19 livros publicados sobre ele, exclusivamente sobre ele.
E o cara tinha só 40 anos. Quantos livros já terão sido lançados hoje sobre Bob Dylan, sua vida e obra?
“Ele é o único autor de rock a quem o termo poeta pode ser rigorosamente aplicado.”
No entanto, paradoxalmente, quando a Academia Sueca anunciou que concedia a Robert Allen Zimmerman o Prêmio Nobel de Literatura de 2016, meio mundo chiou. Críticos, poetas, acadêmicos torceram seus narizinhos pedantes: ora, que audácia dos bofes da Academia Sueca, dar o prêmio a um cantorzinho!
“Come, writers and critics who prophesize with you pen”, ele escreveu na música que dava o título de seu terceiro álbum, The Times They Are A-Changin’, de 1964. Ao chamar os escritores e críticos que profetizavam com suas canetas para prestar atenção ao fato de que os tempos estavam mudando, o garoto de 23 anos estaria profetizando que escritores e críticos iriam cair de pau na Academia Sueca por ela ter compreendido – e eles não – que os tempos mudaram, e há, sim, poesia de qualidade no rock?
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“Existem três, quatro, cinco, vários, alguns milhões de Bob Dylans”, eu escrevi no JT para comemorar os 40 anos dele. “Existe o Bob Dylan rebelde, ativista, panfletário, o das ‘canções de protesto’ (e, engraçado, embora este Bob Dylan tenha já quase 20 anos de idade, é dele que muita gente se lembra mais, principalmente as pessoas que não conhecem bem os diversos Bob Dylans). Existe o Bob Dylan lírico, introspectivo. Existe o Bob Dylan louco, visionário, drogado, felliniano, o das longas narrativas surrealistas, de poemas de imagens tortuosas, complexas. Existe o Bob Dylan que inspirou um grupo terrorista. Existe o Bob Dylan que Jimmy Carter gostava de citar. Existe – assim como existiu o Bob Dylan que pregava a rebeldia dos filhos – o Bob Dylan sossegado pai da família. Existe o Bob Dylan judeu – e não apenas judeu filho de pais judeus, mas adepto do judaísmo, visitante de Israel, orador diante do Muro das Lamentações. Existe o Bob Dylan cristão – e, mais que cristão, cristão atuante, apóstolo, evangelizador, proselitista de sua fé.”
E isso porque o cara tinha vivido apenas 40 anos.
Cacete: quando escrevi aquele texto, Dylan havia lançado 27 álbuns, desde o Bob Dylan de 1962 até Under the Red Sky, de 1990. De lá para cá nem foram tantos assim: 11 álbuns de estúdio – fora um número absurdo de compilações, cuidadosas reuniões de material que não entrou naqueles 38 álbuns originais.
Só da Bootleg Series, a série de discos duplos com as gravações originais que foram muitas vezes pirateadas (daí o termo bootleg), vieram 10. Ou seja: 20 CDs. No mínimo, porque pelo menos um é triplo.
Haja fôlego.
***
Em uma música com o título suave de “Wedding Song”, canção de casamento, de 1974, mas de versos tristes, doídos, ele escreveu:
It’s never been my duty to remake the world at large,
Nor is it my intention to sound a battle charge.
Nunca foi meu dever refazer o mundo inteiro, nem tenho a intenção de tocar a carga de batalha.
Lembrei dos versos de repente, porque volta e meia me vêm à cabeça versos dele – e também porque pensei em escrever a frase “não era minha intenção fazer um novo texto sobre Dylan”.
De fato não era. Não tinha pensado em fazer um texto sobre Dylan – isso que está aí foi saindo aos borbotões sem que eu pudesse controlar.
Na verdade, eu queria apenas registrar aqui que Bob Dylan está fazendo 80 anos, e que há 40 anos eu tive a oportunidade, a sorte, a honra de escrever um texto de duas páginas no Jornal da Tarde em comemoração aos 40 anos dele.
A intenção era fazer o registro – e acrescentar um índice dos textos que estão aqui neste site sobre essa figura gigantesca, imensa, maravilhosa, fascinante, paradoxal.
E tenho que confessar: eu não sabia que eram tantos.
Então lá vai o índice:
* Dylan Volume 1 – O artista que é três, cinco, vários, alguns milhões. O texto do Jornal da Tarde no dia 23/5/1981.
* Dylan Volume 2 – O press release do disco Infidels.
* Dylan Volume 3 – Batendo na porta do céu. Sobre o disco Time Out of Mind.
* Dylan Volume 4 – Um gênio que não pára. Uma atualização sobre o trabalho dele até 2010.
* Robert Allen Zimmerman, o divisor de águas. Sobre as reações iradas contra a escolha do artista para o Prêmio Nobel.
* Dylan soberbo, para uma platéia que merecia Dylan. Sobre o show do homem em São Paulo e, 2012.
* Dylan, Moustaki e a minha mulher. Um suelto sobre duas encantadoras canções de amor.
* Onde Paul, Dylan e Sinatra se encontram. Esse texto não é meu, mas de outro dylanogista, José Nêumanne Pinto.
* Sobre suportes físicos – e Dylan. O encantamento por Another Self Portrait (1969-1971) – The Bootleg Series Vol. 10.
* Dylan dá porrada na Justiça. Sobre três canções dele que são violentos panfletos contra maus juízes e/ou a própria Justiça.
* O Bolero de Dylan. Sobre “Red River Shore”, uma canção que é como a célebre obra de Ravel.
* Meus discos: Odetta Sings Dylan. A extraordinária cantora foi a primeira a fazer um álbum só com canções do então jovem compositor.
* Meus discos: Nashville Skyline. Sobre o disco que Dylan fez para se distanciar do passado de porta-voz da geração.
* Uma simples, delicada, suave canção de amor. Sobre “Tomorrow is a Long Time”.
* Batendo na porta do céu. Sobre as canções de Dylan e de Simon sobre knocking on heaven’s door.
* O que raios, diabo, Dylan quis dizer? Sobre a absoluta delícia que é “Black Diamond Bay”.
* Eis aí o que o Dylan queria dizer, estúpido! Um leitor respondeu à minha pergunta e explicou a letra de “Black Diamond Bay”.
* Dylan e Joan Baez cantam na Casa Branca as músicas que mudaram os EUA.
* “Sonhei um sonho que me deixou triste.” Sobre a canção de Dylan, o passar do tempo, o Colégio de Aplicação.
24/5/2021, o dia do 80 anos de Dylan.
Que texto maravilhoso, Serjão! Dá vontade de reler. Beijão.